Matheus Castanho Virgulino – Internacionalista

Sob o espírito da modernidade, é inpensável que devamos pensar na guerra e seus instrumentos como algo diferente da aplicação mecânica da força de um estado sobre outro. Além disso, é difícil ver qualquer caráter metafísico ou pessoal sobre a rigidez do comando das forças armadas. No entanto, em países como o Reino Unido, onde o monarca é chefe de estado, essa estrutura reminiscente levada pelas marés da história ainda tem pertinência.

As origens da realeza remontam aos tempos da antiga Suméria, onde as primeiras iterações do estado fizeram a transição de teocracias centradas no templo para monarquias centradas na figura de comandantes militares à medida que os conflitos se tornavam mais frequentes (BAUER, 2007). Apesar do poder régio manter um caráter metafísico, sendo a religiosidade a principal forma de interpretação da realidade antes da revolução científica, podemos afirmar que desde o começo os reis tinham uma natureza inerentemente militar.

No caso da Grã-Bretanha, as origens de sua aristocracia real podem ser traçadas ao turbulento período que seguiu a saída do império romano da ilha durante a antiguidade tardia, deixando um vácuo de poder que foi preenchido por uma miríade de povos “bárbaros”. Os colonos germânicos que vieram do norte da Alemanha e do sul da Dinamarca, conhecidos coletivamente como anglo-saxões, seriam os povos mais proeminentes neste período de migrações (YORKE, 2009). Através do estabelecimento de sete reinos que mais tarde seriam unificados sob o rei Aethelstan de Wessex, foram erguidos os pilares da nação inglesa, bem como de sua monarquia.

Os primeiros reis ingleses, ou “Cynings”, seriam senhores da guerra que lideraram bandos de guerreiros durante a colonização da Britânia, assumindo o controle de áreas anteriormente mantidas pelos administradores romanos (YORKE, 2003). Sua legitimidade foi estabelecida tanto por suas proezas em batalha quanto por proveniência divina, com esses primeiros príncipes alegando descendência de Woden, a iteração anglo-saxônica do deus germânico mais comumente conhecido como Odin.

A conversão ao cristianismo no início do século VI e as invasões vikings que assolaram o continente nos séculos VIII e IX provocaram significativas transformações políticas nas ilhas britânicas. Sobretudo após a conquista normanda de 1066, o feudalismo, que como diz Marc Bloch (2019) são “laços de homem a homem” que baseava a hierarquização do poder na dependência e vassalagem entre a nobreza, o clero e o campesinato, consolidou-se.

O cristianismo deu aos reis uma legitimidade para governar concedida pelo próprio Deus, e as estruturas feudais os colocaram no topo da nobreza, sendo o líder régio guardião e protetor do reino. O ideal de nobreza na Europa feudal era sustentado pelo papel do aristocrata como guerreiro, e, portanto, os Reis deveriam ser exemplos dos ideais da cavalaria, para travar uma “guerra justa” contra os supostos inimigos da fé cristã e do reino. De fato, podemos dizer que a Inglaterra foi a monarquia mais centralizada da Europa medieval, permitindo que seus reis levantassem exércitos comparáveis aos da mais populosa França durante a guerra dos cem anos (HOLMES, 1975).

Com o fim da Idade Média, a Inglaterra, como as demais monarquias da França e da Áustria, passou por um processo de centralização do Estado através do advento do absolutismo, processo que acabou levando ao nascimento do Estado moderno. O poder da monarquia britânica atingiu seu apogeu durante a dinastia Tudor, que precedeu a dinastia Stuart que unificou a Inglaterra e a Escócia sob uma união pessoal.

No entanto, sob o governo de Carlos I, as tensões provocadas pela reforma protestante e a tensão social entre a monarquia e o parlamento majoritariamente burguês provocaram a Guerra Civil Inglesa, que levou temporariamente ao estabelecimento de uma república sob Oliver Cromwell. O clamor popular e as manobras políticas levaram à restauração da monarquia não muito depois desses eventos, mas um importante precedente foi feito.

Tornou-se quase um consenso que o monarca não deveria ser absoluto em seu poder, e a derrubada de James II por sua filha Anne e seu marido na Revolução Gloriosa de 1688 e 1689 proporcionou uma oportunidade para modernizar a monarquia. A partir de então o monarca seria um símbolo, uma instituição que dava legitimidade ao governo parlamentar e seus ministros, mas não governava diretamente. Com esse quadro, o Reino Unido gradualmente se transformou em uma democracia parlamentar, regida pela precedência da lei e das instituições representativas (BLANNING, 2008).

A monarquia, porém, nunca perdeu o seu imenso prestígio civil, assim como manteve sua natureza militar. Os monarcas, mesmo que não governassem, ainda eram os governantes soberanos e nominais do Estado, sob o qual todas as ações governamentais eram feitas em seu nome. Poder simbólico e poder direto, como diria Bourdieu (1989) são alguns dos conceitos mais fundamentais do imaginário político. A engenhosidade do sistema britânico é a divisão de ambos os poderes em instituições distintas, então, mesmo que as forças militares obedeçam ao primeiro-ministro, seu juramento de lealdade é feito para a monarquia.

Quando as forças armadas britânicas, através de conquista e subjugação de povos, forjaram o império colonial mais extenso da história, o fizeram em nome da Rainha Vitória. Quando os Britânicos se escondiam no underground das bombas da blitz, era a voz do Rei George VI que oferecia um grau de estabilidade. Quando o Reino Unido fez a lenta transição para uma sociedade globalizada, cosmopolita e de caráter mais progressista, suas leis foram aprovadas pela caneta da Rainha Elizabeth II. Assim, o monarca torna-se tanto o receptáculo das tradições e da história da nação, dando certa continuidade ao seu passado remoto, quanto o legitimador das ações dos governos formados em seu nome, sejam elas para o bem ou para o mal.

A coroação do mais recente monarca, Charles III, ocorre em uma época em que tanto a composição, a percepção e o humor da nação são drasticamente diferentes da que a precedeu. Enquanto a maioria ainda vê a monarquia como uma instituição pilar da vida britânica e o monarca como guardião da vontade do povo, outros a veem apenas como uma relíquia ultrapassada de um passado distante, evocando memórias do colonialismo e da estratificação que não têm lugar no século XXI. Seja como for, pode-se dizer com certeza que, qualquer que seja o futuro que aguarda esta antiga instituição aristocrática, deve ser decidido não mais pela vontade divina, mas pelo desejo soberano e democrático do povo.

Referências:

BLOCH, Marc. A SOCIEDADE FEUDAL. São Paulo: Editora Edipro, 2019.

HOLMES, George. A EUROPA NA IDADE MÉDIA: 1320-1450. Lisboa: Editorial Presença, 1975.

BLANNING, Tim. THE PURSUIT OF GLORY: Europe 1648-1815. Penguin Books, 2008.

BOURDIEU, Pierre. O PODER SIMBÓLICO. Lisboa: Difusão Editorial, 1989.

YORKE, Barbara. KINGS AND KINGDOMS OF EARLY ANGLO-SAXON ENGLAND. Londres: Routledge Taylor & Francis Group, 2003.

YORKE, Barbara. BRITAIN AND IRELAND c.500. In: STAFFORD, Pauline (ed.). A COMPANION TO THE EARLY MIDDLE-AGES: Britain and Ireland c.500-1100. Chichester: Wiley-Blackwell, 2009. cap. 4, p. 41-56.

BAUER, Susan Wise. THE HISTORY OF THE ANCIENT WORLD. W.W Norton, 2007.