
Keity Oliveira (acadêmica do 5º semestre de RI da UNAMA)
A Somália, é um país localizado no lado leste do continente africano, próximo do Golfo de Áden, sendo de localização estratégica, por se situar no Chifre da África, no qual o Mar Vermelho e o Canal de Suez passam próximos ao literal do país. Nas últimas décadas, a região eclodiu como um dos espaços de ação privilegiados da pirataria marítima, que atingiu seu ápice em 2011, contabilizando 237 ataques (LESSA, 2015). Muito além de ser fruto de uma guerra civil, que dura há mais de 20 anos no país, a situação da pirataria marítima traduz a herança colonial de um imperialismo vigente desde antes da Conferência de Berlim, que tratou de dividir o território da África entre as potências colonialistas para a ocupação e exploração dos territórios.
O termo pirataria se origina do grego e do latim, podendo significar “bandido” ou “aquele que ataca” na primeira, e “ladrão de mar” na segunda. É uma atividade que data desde 735 a.C, e que aumenta conforme o fluxo de comércio marítimo ao redor do mundo, em processos de ascensão e declínio (ASSIS, 2019). Fatores relacionados a praias longas e isoladas, a falta de um governo central e uma população sem muitas alternativas econômicas, criaram as condições apropriadas para a Somália se transformar num local ideal para a pirataria, que desde a década de 1990, se tornou um negócio lucrativo de longo-prazo na região.
O atual panorama político-administrativo da Somália, é consequência de constantes conflitos geopolíticos na região do Chifre da África, assim como, possui uma forte relação com a incapacidade de adequação das estruturas que formam os Estados Nação modernos ocidentalizados às sociedades africanas tradicionais (LESSA, 2015). O que reflete a ineficiência da legitimidade desses Estados, perante as suas populações. A estrutura organizacional somali, é historicamente baseada na divisão entre diversos clãs, modelo que colide com o molde estrutural dos Estados Nação e que, segundo CHALIAND (1982), reflete a busca dos clãs por influência política e poder dentro do governo.
A instabilidade na região do Chifre da África assume seu ápice no período referente a Guerra Fria, onde muitos países africanos buscaram o apoio dos EUA, da URSS e seus aliados, para obter forças e armamentos para seus próprios conflitos territoriais. Dessa forma, a Somália, que estava iniciando suas disputas territoriais pós-independência, em 1960, sofre um golpe de Estado nove anos depois, com o general militar Siad Barrés assumindo o poder do país.
Porém, a crescente insatisfação popular na Somália com o governo de Siad Barré, resultou na formação de movimentos insurgentes e no início de uma guerra civil, que mergulhou o país em um descontrole estatal, ocasionado pela deposição do governo de Barré, posteriormente por grupos militantes, aumentando assim, as disputas territoriais dentro do país. O colapso deixado pelo governo, transformou a capital Mogadício, em uma praça de guerra com o embate entre clãs rivais que contribuiu para o clima geral de anarquia, morte e destruição, deixando a fome como uma das principais consequências da guerra.
Nesse sentido, a fragilidade estatal possibilitou o surgimento de atividades ilícitas, como a pirataria e a atuação de grupos ligados a criminalidade, como as milícias que atuavam localmente, o que condicionou um cenário de multiterritorialidades na região (LESSA, 2015). Ademais, a ineficácia de um patrulhamento marítimo, em conjunto com a inexistência de um aparato jurídico forte para manter o território marítimo da Somália protegido, tornou o país vulnerável perante outros Estados, se tornando, assim, um alvo para estrangeiros que pescavam industrialmente e utilizavam as águas para o despejo de detritos tóxicos (GUEDES, 2008).
No cenário internacional, a Somália é classificada como um “rogue state” (Estado desonesto, em tradução livre), pois sua instabilidade interna poderia ameaçar a paz mundial (BONIS, 2013). Alguns analistas também enquadram o país como “estado falido”, cuja o significado não é claro, mas que envolve a total ou parcial incapacidade de um Estado de manter princípios básicos de sua soberania, como garantir a segurança e serviços básicos à população, manter suas fronteiras protegidas e fazer aplicação interna de leis. A falta desses requisitos propiciou à região, a tornar-se um verdadeiro paraíso para a pirataria marítima.
Assolados pela fome, pobreza, a falta de recursos à saúde e a impunidade que sustentava os atos de pesca ilícita, as populações pesqueiras e antigas guardas costeiras da Somália, desenvolveram estratégias de proteção da costa marítima somali. A priori, essas estratégias consistiam em práticas de pirataria marítima, onde os principais alvos eram os navios pesqueiros estrangeiros, que eram atacados e sequestrados e somente liberados após o pagamento de resgate (LESSA, 2015).
A prática dessa atividade, contudo, se mostrou altamente lucrativa, o que atraiu novos atores como senhores de guerra e milícias locais, fato que propiciou seu desenvolvimento e especialização, tornando-a, posteriormente, uma atividade econômica endêmica na região (ZAGO e MINILLO, 2008). Segundo relatório do Banco Mundial, entre os anos de 2005 e 2011, 1.099 navios foram atacados por piratas somalis, e o pagamento pela retomada das cargas e tripulações sequestradas na costa da Somália, custou cerca de 338 milhões de dólares em resgastes, e os custos anuais para economia global da pirataria na região, foram estimados em 18 bilhões de dólares (SILVA, 2017).
O impacto financeiro da atividade no Chifre da África, tornou-se uma ameaça para a estabilidade do comércio internacional, que iniciou uma “guerra” contra a pirataria na região. Em 2008, o Conselho de Segurança da Nações Unidas autorizou nos arredores da costa somali, o uso da força no combate à pirataria, no mar territorial da Somália e, posteriormente, dentro do próprio território africano (BORGES, 2014).
Nos últimos anos, diferentes organizações e instituições atuaram em prol da ameaça, com ações coordenadas pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), União Europeia (UE) e outros atores do sistema internacional. A ação mais bem sucedida foi a Ocean Shield, realizada pela OTAN, em dezembro de 2016, que preveniu centenas de ataques e conseguiu prender e processar piratas por autoridades nacionais (NATO, 2016), o que resultou em pouquíssimos relatos de pirataria na região, atualmente.
Portanto, as diferentes ações tomadas pelos organismos internacionais diminuíram consideravelmente a atuação dos piratas, nos últimos anos, porém, não há evidências de que eles não voltarão. O futuro do país ainda é incerto, já que permanece afundado em uma guerra civil, sem pretensões de terminar cedo. A busca por soluções para o problema ainda continua, mesmo com os baixos índices da atividade, porém, a constante investida internacional na exploração dos recursos naturais do território africano, cabe-se questionar acerca dessa intervenção: quem são os verdadeiros piratas?
REFERÊNCIAS
ASSIS, Larissa Fernandes Ribeiro. A atuação dos Piratas Somalis e seu impacto no sistema internacional. Conjuntura Internacional. PUC-Minas, 2019. Disponível em: < https://pucminasconjuntura.wordpress.com/2019/05/29/a-atuacao-dos-piratas-somalis-e-seu-impacto-no-sistema-internacional/ > Acesso em: 08 de junho de 2023.
BONIS, Gabriel. A milionária cadeia da pirataria na Somália. Carta Capital. Publicado em: 05 de novembro de 2011. Disponível em: < https://www.cartacapital.com.br/mundo/a-milionaria-cadeia-da-pirataria-na-somalia-6285-html/ > Acesso em: 09 de junho de 2023.
BORGES, Bruno da Cruz. Imperialismo na África e a pirataria marítima. Núcleo de Direitos Humanos. UNISINOS, 2014. Disponível em: < http://unisinos.br/blogs/ndh/2014/02/03/imperialismo-na-africa-e-a-pirataria-maritima/ > Acesso em: 08 de junho de 2023.
CHALIAND, Gerard. A Luta pela África: estratégia das potências. São Paulo: Editora Brasiliense, 1982. Acesso em: 08 de junho de 2023.
GUEDES, Portela. Pirataria Marítima: uma ameaça em escala global. Revista da Armada. p. 12- 14, 2008. Acesso em: 08 de junho de 2023.
LESSA, Luana Alves. Ascensão e declínio da pirataria marítima no Chifre da África: Territórios, territorialidades, escalas de ação e políticas de seguridade internacional. URFGS: Porto Alegre, 2015. Disponível em: < https://www.ufrgs.br/sicp/wp-content/uploads/2015/09/3.-LESSA-Luana-Alves-Ascens%C3%A3o-e-decl%C3%ADnio-da-pirataria-mar%C3%ADtima-no-Chifre-da-%C3%81frica-Territ%C3%B3rios-territorialidades-escalas-de-a%C3%A7%C3%A3o-e-pol%C3%ADticas-de-seguridade-internacional.pdf > Acesso em: 08 de junho de 2023.
NATO. NATO concludes successful counter-piracy mission. 15 de dezembro de 2016. NATO – News. Disponível em: < https://www.nato.int/cps/en/natohq/news_139420.htm> > Acesso em: 09 de junho de 2023.
SILVA, Gustavo. Somália: tudo o que você precisa saber sobre o país. Veja. Publicado em: 20 de outubro de 2017. Disponível em: < https://veja.abril.com.br/mundo/somalia-tudo-o-que-voce-precisa-saber-sobre-o-pais > Acesso em: 08 de junho de 2023.
ZAGO, Evandro; MINILLO, Xaman. Consequências da falência de um Estado: Pirataria nas águas da Somália. Meridiano 47. n 100, p11 – 16, 2008. Disponível em: < http://seer.bce.unb.br/index.php/MED/article/view/845 > Acesso em: 08 de junho de 2023.
