
Keity Oliveira – acadêmica do 5º semestre de Relações Internacionais da UNAMA
A violência sexual é uma das armas mais antigas nos conflitos que marcaram a história do mundo. Seja na Idade Média ou na Idade Moderna, nas guerras mundiais ou em conflitos territoriais, as mulheres e seus corpos foram – e ainda são – sistematicamente violados. A data 19 de junho, carrega consigo o Dia Internacional da Eliminação da Violência Sexual em Conflitos, estabelecida pela Assembleia Geral da ONU em 2015, com o objetivo de chamar atenção para essa situação, por vezes invisível e pouco discutida na realidade das pessoas.
O aumento da visibilidade na agenda da violência sexual contra mulheres em conflitos armados contribuiu para o surgimento das teorias feministas de Segurança Internacional, simultaneamente ao surgimento das teorias feministas de Relações Internacionais, deixando de lado a noção tradicional de segurança focada no Estado. TICKNER (2004), discorre que as posições de “dominadores” e “dominados”, masculinidades e feminilidades, se estendem, também, às pessoas, dentro da segurança feminista, o que possibilita analisar os efeitos de conflitos sobre as mulheres. Nesse sentido, a ótica da segurança feminista analisa que os Estados, ao (re)produzirem a guerra, continuam mantendo políticas de viés sexista que são (re)produzidas internamente, tendo como consequências as violências sexuais perpetradas nos conflitos (JEONG, 2000).
O termo “violência sexual em conflito, conceitua-se a partir da inclusão de situações de estupro, escravidão sexual, prostituição forçada, gravidez forçada, esterilização forçada, casamento forçado e qualquer outra violência de gravidade comparada, praticada contra mulheres, homens, meninas e meninos, que esteja direta ou indiretamente ligada a um conflito (ONU, 2012). É usada como forma de dominação, principalmente por questões relacionadas a conceitos culturais ao papel de cada gênero, e também é um ato praticado com a intenção de humilhar uma pessoa, família ou comunidade, além de ser uma forma de tortura e de punição, praticada contra grupos inimigos em conflitos. A violência sexual é sobretudo, uma forma estratégica para alcançar objetivos militares, principalmente para alcançar uma “limpeza étnica” no território em questão (PENACHIONI, 2017) e é praticada por milícias, forças do governo, civis, forças armadas, grupos paramilitares e soldados de peacekeeping.
Apesar de ser uma problemática antiga e naturalizada, a significativa atenção dada à violência sexual perpetrada em conflitos armados, especialmente como arma de guerra, é um fenômeno recente, iniciado na virada do século XX para o século XXI, com os julgamentos dos tribunais adhoc para a antiga Iugoslávia e Ruanda.
Dentre os conflitos que possuem os maiores números de vítimas que sofreram com algum tipo de violência sexual, destaca-se o da Bósnia, Ruanda, Boko Haram na Nigéria, Tigré e os atentados contra mulheres sul-coreanas no Japão durante a Segunda Guerra Mundial, que ficaram conhecidas como “mulheres de conforto” e eram tratadas como escravas sexuais a serviço de soldados japoneses (VERENICZ, 2022). Com esses conflitos, a violência sexual foi amplamente reconhecida como uma arma de guerra, utilizada como uma tática elaborada, pensada e executada, através de uma cadeia de comandos com o objetivo de enfraquecer o inimigo.
A naturalização das violências sexuais contra mulheres nos conflitos, impediram, durante muito tempo, que os perpetradores fossem responsabilizados e/ou que alguma espécie de reparação fosse feita às sobreviventes ou aos familiares de vítimas fatais (REZENDE, 2021). O período de pós Segunda Guerra Mundial foi considerado como o marco do Direito Internacional Penal e a punição da prática começou a ser analisada como crime contra a humanidade nos tribunais internacionais, mas foi somente no ano de 2014 que o Tribunal Penal Internacional (TPI), considerou a violência sexual como arma de guerra.
Analisando-se os fatos com as teorias feministas de segurança internacional, as formas de violência contra as mulheres, em conflitos armados, são utilizadas como uma estratégia de guerra e naturalizados aos olhos dos homens. ANDRADE (2020) ressalta que não há como falar em combate a violência sexual como arma de guerra, sem levar em consideração questões estruturais e as assimetrias de gênero existentes que condicionam como as mulheres e seus corpos são vistos e identificados. É evidente, portanto, que se constitui como uma problemática de segurança internacional e, principalmente, uma ameaça à segurança e aos direitos das mulheres, pois, os conflitos acentuam as desigualdades de gênero, as masculinidades hegemônicas e a “naturalidade” dos homens de cometerem violações (COELHO, 2021). As estruturas hierárquicas sociais, políticas e econômicas contribuem para a opressão e legitimação do corpo feminino como um instrumento político de manifestação de vontades, pensamento enraizado desde o período colonialista e que reflete a própria hierarquização social de hoje.
Portanto, o corpo feminino, inserido numa sociedade estruturada no patriarcado, não se constitui apenas da mulher. Torna-se um corpo político, um campo de batalha que enfrenta diversas maneiras de violações ainda naturalizadas em conflitos armados. O dia 19 de junho é uma data que clama por ações mais efetivas de organizações que deveriam ser protetoras dos grupos mais vulneráveis. É uma data que carrega consigo a memória das vítimas e sobreviventes de violência sexual que não podem ficar sem nome, no desconhecido, sendo desumanizadas por seus perpetradores.
REFERÊNCIAS
ANDRADE, I. A. de O. Violência sexual em conflitos armados: uma leitura feminista e pós-colonial sobre as iniciativas de seu combate no sistema ONU (2008–2019). 2020. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Pelotas. Disponível em: < http://guaiaca.ufpel.edu.br/handle/prefix/6898 > Acesso em: 14 de junho de 2023.
COELHO, Mainara Gomes Cândida. Corpos em campos de batalha: o estupro de mulheres como arma de guerra. TCC (graduação em Relações Internacionais) – Universidade Federal de Santa Catarina. Disponível em: < https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/222966 > Acesso em: 14 de junho de 2023.
JEONG, Ho-Won. Feminist understandings of violence. In: JEONG, HO-WON. Peace and conflict studies an introduction. New York: institute for conflict analysis and resolution george mason university, 2000. Cap. 7. P. 63-69. Acesso em: 14 de junho de 2023.
Organização das Nações Unidas – ONU. Conflict-related sexual violence – Report of the Secretary-General. S/2012/33. 13 janeiro 2012. Disponível em: < https://www.un.org/sexualviolenceinconflict/wp-content/uploads/report/conflict-related-sexual-violence-report-of-the-secretary-general/SG-Report-2012.pdf > Acesso em: 13 de junho de 2023.
PENACHIONI, Júlia Battistuzzi. Violência sexual em conflitos armados e em ataques generalizados ou sistemáticos: a criminalização pelo Tribunal Penal Internacional. 2017. 141 f. Dissertação (Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo. Disponível em: < https://repositorio.pucsp.br/handle/handle/19843 > Acesso em: 13 de junho de 2023.
REZENDE, Victória Medeiros. Violência sexual em conflitos armados no tribunal penal internacional: uma leitura feminista interseccional. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Pará, Instituto de Ciências Jurídicas, Programa de Pós-Graduação em Direito, Belém, 2021. Disponível em: < https://repositorio.ufpa.br/bitstream/2011/15034/1/Dissertacao_ViolenciaSessualConflitos.pdf > Acesso em: 14 de junho de 2023.
TICKNER, J. A. Feminist responses to international security studies. Peace review, v. 16, n. 1, p. 43-48, 2004. Acesso em: 14 de junho de 2023.
VERENICZ, Marina. Como e por que o estupro é utilizado como arma de guerra. Carta Capital. 2022. Disponível em: < https://www.cartacapital.com.br/mundo/como-e-por-que-o-estupro-e-utilizado-como-arma-de-guerra/ > Acesso em: 13 de junho de 2023.
