Matheus Castanho Virgulino – internacionalista

A história das nações é muitas vezes focada nas origens destas, dos fundamentos históricos básicos que dão origem ao seu caráter, culturas e instituições. Mas, de tempos em tempos, cruza-se um ponto liminar, um acontecimento, uma convergência a partir da qual, a própria identidade de um determinado povo é alterada e moldada a partir daí. No caso dos Estados Unidos da América, esse ponto foi a Guerra Civil.

A Guerra Civil foi para os Estados Unidos, o que as Guerras Púnicas, foram para Roma, ou as Guerras Persas, para a Grécia antiga. Trouxe consigo uma onda de mudanças, derrubou instituições centenárias e deu condições internas para que a nação, por ela dividida, se colocasse na vanguarda do cenário mundial. Nasceu de uma profunda contradição, uma hipocrisia que vivia à sombra da jovem república, mas que estava sempre presente para todos verem: que uma nação concebida sobre uma constituição, baseada na liberdade e na igualdade de direitos, era também o maior país escravagista do mundo, onde cerca de 4 milhões de seus cidadãos eram considerados propriedade de outros cidadãos (LEPORE, 2020).

Pode-se dizer que os Estados Unidos já estavam divididos internamente muito antes das primeiras balas de canhão a serem disparadas no Fort Sumter, em 1861. A esfera política dos EUA era dominada pelo delicado equilíbrio de poder entre os estados livres do norte e os estados escravistas do sul. De um lado, os nortistas buscavam restringir a escravidão e impulsionar o crescimento de uma economia industrial doméstica e setores financeiros fortes, enquanto os sulistas mantinham a primazia de sua economia voltada para a exportação de commodities, sustentados pelo trabalho escravo (GALLMAN, 1979).

Um viajante atento, atravessando de um lado ao outro do rio Ohio, seria perdoado ao pensar que está atravessando uma fronteira entre dois países diferentes: enquanto o Norte tinha cidades extensas, uma acelerada revolução econômica alimentada por um espírito empreendedor e uma classe média em ascensão, o sul era rural e sua economia era dominada por uma classe aristocrática de latifundiários, não dissimilar das economias escravistas remanescentes da América Latina na época, como Cuba ou Brasil.

Desde os pais fundadores, a escravidão era reconhecida como uma importante questão contestatória, uma questão não resolvida que lentamente emergiu como o principal divisor na esfera política, e a expansão para o oeste levou as tensões a um ponto de ebulição. A ausência de ameaças externas europeias após a Guerra de 1812 contra os britânicos deu aos Estados Unidos a chance de expansão ocidental com base na doutrina do “destino manifesto” (VISENTINI; PEREIRA, 2010). A compra da Louisiana, em 1803 e a guerra contra o México, em 1846, mais que dobraram o território da nação, e novos estados foram criados para aderir à união. O Compromisso do Missouri, de 1820 e o Compromisso de 1850, evitaram por pouco a guerra ao reorganizar o equilíbrio entre os estados livres e escravistas, mas apenas empurrando o problema para debaixo do tapete (McPHERSON, 2010).

Em 1854, a Lei Kansas-Nebraska do senador Stephen Douglas, provou ser a peça de legislação que separou os legisladores dos partidos Whig e Democrata irreparavelmente na questão da escravidão. A lei fez com que a questão da escravidão nos territórios de Kansas e Nebraska fosse colocada ao voto popular, causando um período de violência sectária, conhecido como “sangramento do Kansas” que deixou mais de 50 mortos (McPHERSON, 1988). O Partido Republicano surgiria de políticos derivados dos partidos Whig e Democrata, que se opunham à expansão da escravidão. Seu candidato, Abraham Lincoln, viria a vencer a eleição presidencial de 1860 pelos votos do colégio eleitoral dos estados do Norte. Lincoln foi eleito presidente de um país composto por 34 estados, quando assumiu o cargo em 1861, onze haviam se separado e se declarado os Estados Confederados da América. Quando as milícias do Sul atacaram Fort Sumter na Carolina do Sul, uma luta titânica pela alma e caráter dos Estados Unidos começou.

Das areias do Novo México aos campos de algodão da Virgínia, dos pântanos da Flórida às cidades da Pensilvânia, a guerra dividiria comunidades e famílias, transformaria igrejas e escolas em hospitais de campo, fazendeiros trocariam seus arados pelo cabo do mosquete. Desde a Revolução de 1776, nenhum conflito havia exercido uma transformação tão grande na consciência do povo daquela nação, e nenhum desde então, exceto a Segunda Grande Guerra, seria tão crucial para seu poder futuro (id.). As doutrinas de homens como William Sherman e Ulysses S. Grant, assim como as reformas e inovações militares feitas durante a guerra iriam modernizar e lançar as bases para as mesmas forças armadas que mais tarde lutariam nas praias da Normandia. A mobilização bélica ampliaria ainda mais a indústria e a economia que mais tarde se tornariam as mais importantes do mundo.

A principal razão do Norte para lutar era preservar a União, não a abolição da escravatura, mas à medida que a guerra avançava, esses dois objetivos tornaram-se quase inexoravelmente ligados um ao outro. A libertação dos escravos foi inicialmente tomada como uma medida de guerra para enfraquecer o esforço bélico sulista, mas foi o primeiro passo para a emancipação, que veio na 13ª emenda em 1865, com a 14ª e 15ª emenda, respectivamente, concedendo igualdade de cidadania e direito de voto para a população negra. Na época do discurso de Gettysburg, no qual Lincoln descreveu a guerra como um “novo nascimento da liberdade” (McPHERSON, 1988, p.859, tradução nossa), ela havia se transformado de um mero esforço para salvar a União em uma luta, para conferir o direito básico de liberdade a toda uma população.

A Guerra Civil também significou o triunfo do modelo institucional e econômico dominante do Norte, mesmo que o legado da escravidão continuasse por meio das leis segregacionistas que vigoraram até meados do século XX, e o racismo estrutural que persiste até hoje. As instituições latifundiárias escravagistas “caíram com um grande colapso em 1865 e foram substituídas pelas instituições e pela ideologia do capitalismo empreendedor de trabalho livre.” (McPHERSON, 2010, p.13, tradução nossa).

Talvez o mais importante, a guerra consolidaria os Estados Unidos não como uma união díspar de estados sob uma tímida autoridade federal, mas como um Estado com capacidade interna e poder para projetar sua força externamente. Podemos dizer que, se a Guerra Revolucionária deu origem aos Estados Unidos, a Guerra Civil o amadureceu em uma grande potência.

Referêcias:

GALLMAN, Robert E. Slavery and Southern Economic Growth. Southern Economic Journal, vol. 45, no. 4, 1979, p.1007–22. JSTOR, https://doi.org/10.2307/1056952. Acesso em 21 de Agosto de 2023.

LEPORE, Jill. ESTAS VERDADES: A História da Formação dos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Editora Intrínseca, 2020.

McPHERSON, James. BATTLE CRY OF FREEDOM: The Civil War Era. Nova York: Oxford University Press, 1988.

MCPHERSON, James. Out of War, a New Nation. Prologue Magazine: Quarterly of the National Archives and Records Administration, [s. l.], v. 42, ed. 1, p. 6-13, Primavera 2010.

VISENTINI, Paulo G. Fagundes; PEREIRA, Analúcia Danilevicz. MANUAL DO CANCIDATO: História Mundial Contemporânea (1776-1991). Brasília: Fundação Alexandre Gusmão, 2010.