Lana Jennifer Borges – acadêmica do 6° semestre de Relações Internacionais da Unama.

O resultado das recentes eleições primárias da Argentina, ou PASO (Primárias Abertas Simultâneas e Obrigatórias), tem sido motivo de diversas notícias nos grandes jornais e debates na academia. Primeiro, por se tratar de um dos países mais importantes do Mercosul e da América Latina e, segundo, por surpreendentemente o povo argentino ter colocado em primeiro lugar nessas eleições primárias Javier Milei, um candidato de extrema direita, de ideologia anarcocapitalista, que pode significar um grande risco para o país.

Inicialmente, é importante entender o contexto histórico da Argentina, que tem uma tradição de luta popular e de projetos políticos de esquerda. A começar por Juan  Domingo  Perón, que foi eleito presidente duas vezes, e governou de 1945 a 1955, quando sofreu um golpe militar. Foi protagonista de grandes greves nos anos 60, e da luta armada nos anos 70, tendo como princípios uma ideologia anticapitalista, nacionalista e de equidade social.  Ele deu origem ao movimento Peronista, que ao longo do tempo passou por diversas mudanças ideológicas e adquiriu novas facetas, todavia ainda ligado à luta dos trabalhadores. Após isso, a Argentina consolidou o que passou a ser chamado de movimento kirchnerista (ou Era K), iniciado com Nestor Kirchner, que “foi responsável pela formulação  e  implementação  do  neodesenvolvimentismo  da década de 1990, bem como a estabilização econômica, após uma época de inflação e o pagamento das dívidas com o FMI” (NETO, 2016), e continuado por Cristina  Kirchner, sua sucessora a partir de 2007 até 2015 (SOUZA, 2021). 

No entanto, é importante ressaltar os problemas estruturais do país, que se encontra em uma grave crise econômica e social, a qual teve início na década de 90, com as reformas econômicas liberais derivadas do Consenso de Washington, levadas a cabo pelo presidente Menem (FERRARI, CUNHA, 2008). Após isso, apesar da atenuação da crise durante a “Era K”, os problemas tiveram um grande agravamento com o presidente Mauricio Macri (2015-2019), que fez, durante seu mandato, o maior empréstimo concedido a um único país na história do FMI, recebendo o valor exorbitante de $47 bilhões de dólares, o que tem limitado bastante o país no quesito de investimento em políticas sociais para tentar mudar o quadro de precarização que vive o povo argentino (TADDEI, VITULLO, 2023). 

Além disso, o governo mais recente, dito de esquerda, liderado pelo atual presidente Alberto Fernández e sua vice-presidente Cristina Kirchner, tem sido ineficaz no quesito de resolver os problemas do país, recusando-se a enfrentar o grande empresariado e sua ganância, bem como o Fundo Monetário Internacional, relegando a população a uma situação de crescente miséria com o aumento da inflação e a desvalorização da moeda, além da precarização do trabalho e grandes índices de desemprego (TADDEI, VITULLO, 2023). 

Este breve panorama explica um pouco do resultado dessas eleições primárias. Primeiramente, deve-se destacar o recorde de abstenções nestas eleições, que foi de 30,38%. Em segundo lugar, o candidato mais votado foi Javier Milei, com 30,1% dos votos. Em terceiro, o candidato do movimento Peronista Sergio Massa, que é o atual ministro da economia de Alberto Fernandez, ficou com 20,9% dos votos. E ao final, a candidata Patricia Bullrich, indicada por Macri, com quase 17% (EL PAÍS, 2023). 

Milei se define como “libertário”. Ele faz parte do grupo “Liberdade Avança”, e se declara Anarcocapitalista. Dessa maneira, ele já fez algumas declarações preocupantes, como por exemplo, que “não fará acordo com comunistas”, referindo-se ao Brasil e aos BRICS,  recusando a entrada no bloco, caso eleito. De acordo com o mesmo, seus aliados na política exterior serão Estados Unidos e Israel. Ademais, ele declarou que pretende extinguir 10 ministérios, dentre eles o de desenvolvimento social, da saúde, da educação, do trabalho, do meio ambiente e outros (BBC NEWS, 2023). Outro fato que chama atenção sobre o candidato, é a sua candidata a vice-presidente, Victoria Villarruel, filha do tenente-coronel Eduardo Marcelo Villarruel. Defensora da ditadura Argentina, ela propõe um revisionismo histórico que coloque os militantes guerrilheiros que lutaram pelo fim da ditadura como terroristas. Além disso, ela tambem se coloca contra os direitos humanos, o aborto legal, e a favor da “família, liberdade, direito à vida e propriedade privada” (ESTADÃO, CNN, 2023). 

Marx criticava esse ideal de liberdade proposto pelo liberalismo. Em seu ensaio “Sobre a Questão Judaica”, ele ressalta a contradição das liberdades liberais no mundo desigual forjado pelo sistema capitalista, colocando-a como uma liberdade meramente formal. Além disso, Giorgi Dimitrov traz uma importante reflexão sobre o caráter de classe do fascismo. Em “A Luta pela Unidade da Classe Operária Contra o Fascismo”, ele coloca que em tempos de crises profundas do sistema capitalista, a burguesia recorre a regimes ditatoriais e à repressão para manter-se no poder, dificultar a organização das massas e evitar a revolução dos trabalhadores. 

Diante disso, pode-se perceber que Milei representa os interesses da burguesia Argentina, em especial do mercado financeiro. Ele tem intuito de manter o status quo, garantindo os lucros da elite e colocando o peso da crise econômica sobre a classe trabalhadora. Além disso, percebe-se seu caráter fascista com seus discursos anticomunistas, e os ideais de revisionismo histórico de exaltação da ditadura do país, que matou milhares de pessoas. Assim, pode-se constatar que essa falsa “liberdade” que ele defende restringe-se à liberdade de acumulação de capital e exploração dos trabalhadores, estando disposto a cercear os direitos civis dos cidadãos para garantir os interesses das elites. 

Para concluir, é evidente a grande insatisfação por parte do povo Argentino, que foi vitorioso em diversas lutas, conquistou o direito ao aborto legal e punição para os criminosos da ditadura; que é país do movimento das Mães da Praça de Maio e exemplo da luta por Memória, Verdade e Justiça. Hoje, este mesmo país se encontra em situação de profunda crise e cooptado por discursos que são contra os interesses da maioria da população, tendo estes próximos meses para reverter este quadro, e não permitir o retrocesso brutal que seria a eleição de Javier Milei para a presidência nos próximos anos. 

REFERÊNCIAS

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Javier Milei: quem é o ‘anarcocapitalista’ aliado de Bolsonaro que surpreendeu em primárias na Argentina. BBC Brasil, 2023. Disponível em <https://www.bbc.com/portuguese/articles/cm5j5k15le4o>

MILEI propõe eliminar 10 ministérios caso seja eleito na Argentina; veja quais. CNN Brasil, 2023. Disponível em: <https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/milei-propoe-eliminar-10-ministerios-caso-seja-eleito-na-argentina-veja-quais/>

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KONCHINSKI,Vinicius. Argentina realiza eleições primárias em meio à crise e reaproximação com o Brasil. Brasil de Fato, 12 ago. 2023. Disponível em <https://www.brasildefato.com.br/2023/08/12/argentina-realiza-eleicoes-primarias-em-meio-a-crise-e-reaproximacao-com-o-brasil>

TADDEI,Emilio; VITULLO, Gabriel E. O terremoto eleitoral e o agravamento da crise socioeconômica na Argentina. Diário do Centro do Mundo, 16 ago. 2023. Disponível em: <https://www.diariodocentrodomundo.com.br/o-terremoto-eleitoral-e-o-agravamento-da-crise-socioeconomica-na-argentina/

DE SOUZA, João Roberto dos Reis. O CONSERVADORISMO NA AMÉRICA LATINA: ANÁLISE DOS PROGRAMAS DE GOVERNO APRESENTADOS NAS ELEIÇÕES DA ARGENTINA DE 2011, 2015 E 2019. Revista Textos Graduados, v. 8, n. 1, p. 16-29, 2022.

TV FÓRUM.Emilio Taddei: “Pesquisas na Argentina mostram Milei subindo, mas eleição ainda não está decidida”. Youtube, 2 set. 2023. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ITbrf_fxoFU