Keity Silva de Oliveira – acadêmica do 6° semestre de Relações Internacionais da Unama

Não há como se analisar violência sem a perspectiva do gênero, pois através da lente feminina, se proporciona uma compreensão mais profunda acerca da violência e de como ela está ligada e inserida nas estruturas patriarcais de poder. Desse modo, em 1999, a Organização das Nações Unidas (ONU) estabeleceu o dia 25 de novembro como o Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra as Mulheres, em homenagem as três irmãs Mirabal, que foram assassinadas na data em questão por se oporem à ditadura de Rafael Trujillo na República Dominicana nos anos 60 (Arroyo, 2022).

A investigação do estudo de gênero no âmbito das Relações Internacionais teve destaque no final da década de 1980, no chamado “terceiro debate” das Relações Internacionais, entre os positivistas e os pós-positivistas, que foram responsáveis por romper com as formas de construção de conhecimento anteriores da área, que não possuíam interesse em incluir em suas análises, as variáveis relacionadas com o surgimento de novos atores que impactaram nos fenômenos internacionais (Monte, 2013).

Simone de Beauvoir, em seu livro “O Segundo Sexo” (2009), vai traçar uma importante visão sobre a construção da imagem da mulher. Segundo a autora, o sexo feminino é limitado pela estrutura do patriarcado, com o masculino se apropriando do neutro (ser humano) e caracterizando o feminino como um ente negativo, ou à parte, levando a mulher a ser identificada como “o outro”, o que corrobora para a perda de sua identidade social e pessoal, inviabilizando assim, a capacidade e humanidade do ser feminino. Beauvoir (2019) aponta que essa ideia da mulher como “o outro”, a transforma em objeto antes de ser sujeito, através da ótica masculina, possibilitando a perpetuação da violência de gênero em suas diferentes camadas.

A Declaração sobre a Eliminação da Violência contra as Mulheres (1993) descreve que a violência contra a mulher se configura como “qualquer ato de violência baseada em gênero que resulte, ou possa resultar, em danos ou sofrimentos físicos, sexuais ou psicológicos às mulheres, […] ocorrendo na vida pública ou privada”. Dessa forma, trata-se de uma conduta patriarcal que viola direitos concebidos legalmente como inerentes a todos os seres humanos, sendo um desdobramento direto das relações desiguais entre os gêneros que durante séculos, se tornaram culturalmente naturalizados, legitimados e reproduzidos na sociedade.

Ao longo da vida, uma em cada três mulheres – cerca de 736 milhões de pessoas – é submetida à violência física ou sexual por parte de seu parceiro ou violência sexual por parte de um não parceiro, sendo que estes números permanecem praticamente inalterados na última década (ONU, 2021). A violência contra as mulheres é endêmica em todo os países e começa cedo: uma em cada quatro mulheres jovens (de 15 a 24 anos) que estiveram em um relacionamento já terá sofrido violência de seus parceiros por volta dos vinte anos (ONU, 2021). Com a pandemia da COVID-19, as taxas de violência observadas na forma física, sexual ou psicológica se agravaram ainda mais e no Brasil, foram mais de 2.400 casos de violência, sendo quase 500 feminicídios dentro deste número, somente em 2022 (Pimentel, 2023).

Entre os principais fatores de risco, há a desigualdade de renda, no qual a violência afeta desproporcionalmente as mulheres que vivem em países de baixa e média-baixa renda e o fator de raça que retrata uma realidade preocupante de meninas e mulheres negras no Brasil: mais de 12 milhões de mulheres negras já foram vítimas de violência, correspondendo a 65,6% do total de 18 milhões de mulheres vítimas no país (Ufjf, 2023).

A violência – em todas as suas formas – pode impactar na saúde e no bem-estar de mulheres pelo resto da vida, mesmo muito depois da violência ter acabado. As consequências se associam ao aumento do risco de lesões, depressão, transtornos de ansiedade, gravidez não planejada, infecções sexualmente transmissíveis, incluindo HIV, dentre muitos outros problemas que as colocam em situações de vulnerabilidade (ONU, 2022).

Ao se analisar a temática da violência de gênero com a obra “O Segundo Sexo” (2019), Beauvoir destaca que as estruturas patriarcais da sociedade moldam mulheres a desenvolverem um potencial ideal de feminilidade, como uma criação cultural que é passível de violências por conta da subjugação de mulheres em detrimento dos homens.

Simone expressa que a corporalidade da mulher e os significados sociais que são atribuídos a ela, condicionam sua existência e se legitimam dentro de uma estrutura feita por homens para homens. Nesse sentido, a autora mostra que a cada etapa da vida, as mulheres são estimuladas a assumirem papéis idealizados e submissos, ou seja, se tornam o segundo sexo.

A violência contra a mulher é produto de uma construção histórica – portanto, passível de desconstrução – que traz em seu seio a interseccionalidade entre as categorias de gênero, classe e raça/etnia e suas relações de poder. Em suma, para se alcançar uma sociedade internacional de caráter igualitário e não violento, é necessário questionar os processos de segregação geopolítica e desviar de falas patriarcais, homogeneizadoras e estereotipadas, ampliando a escuta ativa das abordagens femininas e a perspectiva de que conforme Beauvoir (2019), não se nasce mulher, torna-se mulher.

REFERÊNCIAS

ARROYO, Lorena. Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra as Mulheres: o assassinato das irmãs Mirabal que deu origem à data. Folha de São Paulo. Publicado em: 25 de novembro de 2022. Disponível em: < https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2022/11/dia-internacional-para-a-eliminacao-da-violencia-contra-as-mulheres-o-assassinato-das-irmas-mirabal-que-deu-origem-a-data.shtml > Acesso em: 03 de dezembro de 2023.

ASSEMBLEIA GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração sobre a Eliminação da Violência Contra as Mulheres. Resolução 48/104, de 20 de dezembro de 1993. [S.l.: s.n], 1993. 5 p. Acesso em: 03 de dezembro de 2023.

BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo: a experiência vivida. Tradução Sérgio Milliet. Volume 2. 5. Ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2019.

MONTE, Isadora Xavier do. O debate e os debates: abordagens feministas para as relações internacionais. IN. Estudos Feministas, Florianópolis, 21, 2013. Disponível em: < https://www.jstor.org/stable/24328035?read-now=1&seq=1#metadata_info_tab_contents > Acesso em: 03 de dezembro de 2023.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Mais de cinco meninas ou mulheres são mortas a cada hora, em média, em 2021. Publicado em: 23 de novembro de 2022. Disponível em: < https://news.un.org/pt/story/2022/11/1805817 > Acesso em: 03 de dezembro de 2023.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. OMS: uma em cada 3 mulheres em todo o mundo sofre violência. Publicado em: 10 de março de 2021. Disponível em: < https://brasil.un.org/pt-br/115652-oms-uma-em-cada-3-mulheres-em-todo-o-mundo-sofre-viol%C3%AAncia > Acesso em: 03 de dezembro de 2023.

PIMENTEL, Carolina. Campanha quer mobilizar sociedade contra misoginia. Agência Brasil. Publicado em: 07 de agosto de 2023. Disponível em: < https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2023-08/campanha-quer-mobilizar-sociedade-contra-misoginia > Acesso em: 03 de dezembro de 2023.

UFJF. Mulheres negras são as maiores vítimas em casos de violência. Publicado em: 24 de novembro de 2023. Disponível em: < https://www2.ufjf.br/noticias/2023/11/24/mulheres-negras-sao-as-maiores-vitimas-em-casos-de-violencia/ > Acesso em: 03 de dezembro de 2023.