
Matheus Castanho Virgulino, Internacionalista.
Um dos fatos mais surpreendentes da era contemporânea é que a América do Sul demonstrou ser uma das regiões menos propensos a conflitos do mundo, apesar da sua longa história de instabilidade e subdesenvolvimento. Naturalmente, isto revelou-se um fator importante tanto para a integração regional como para o desenvolvimento econômico, mas é um alicerce com bases frágeis. A nova realidade geopolítica oferece desafios crescentes ao concerto diplomático do continente.
O governo bolivariano de Nicolás Maduro na Venezuela passou por uma tempestade de sanções, disputas económicas, protestos civis e desafios políticos nos últimos anos. Esse cenário complica-se ainda mais com sua inimizade com a principal potência hemisférica na figura dos EUA, que tem interesses energéticos em seu entorno (PADULA et al, 2023). No ano passado, seguindo um processo semelhante à anexação russa da Crimeia em 2014, o governo Venezuelano trouxe à tona uma disputa territorial com a Guiana que remonta a 1841, e anunciou um referendo nacional sobre a incorporação da região no entorno do rio Essequibo, que foi aprovado por ampla margem da população venezuelana que participou (THE SOUFAN CENTER, 2023). Isso levou a uma escalada de tensões com a Guiana, que denunciou o referendo como um desafio à sua soberania.
Após uma série de movimentações de tropas na fronteira, exercícios militares americanos com as forças armadas da Guiana e a arbitragem do governo Lula no Brasil para um compromisso mútuo entre Nicolás Maduro e o presidente Irfaan Ali da Guiana para aliviar a situação, a ameaça de confronto direto parece ter diminuído. No entanto, o assunto em questão merece uma discussão sobre o aspecto mutável das causas do ressurgimento da disputa, a arquitetura de segurança da América do Sul e a sua relação com as transformações internacionais mais amplas.
Alguns analistas, como Padula et al (2023), argumentam que a dinâmica geoeconômica do petróleo e o seu papel fundamental na economia venezuelana devem ser considerados o principal fator para a guerra. Muitas nações latino-americanas, em especial a Venezuela, têm sido historicamente dependentes de produtos de exportação para alimentar as suas economias, principalmente como resultado da contração de grandes somas de dívida pública após as suas independências no começo do século XIX (EICHENGREEN et al, 2019). Como diz Victor Bulmer-Thomas: “Pensava-se, em geral, que a maior esperança de um rápido avanço econômico na América Latina se baseava em uma integração mais direta à economia mundial por meio da exportação de produtos e da importação de capitais” (1998, p.57, tradução nossa).
Desde o começo do século XX, com a descoberta de vastas reservas de combustíveis fósseis na bacia de Macaraibo, a Venezuela configura-se como um “petroestado”, cuja economia é dependente da sua produção e da variação de preços de recursos energéticos internacionais (CHEATHAM, ROY, 2023). Por consequência, uma anexação do Essequibo serviria para revitalizar seu setor petrolífero enquanto afastaria a presença de empresas americanas como a ExxonMobil que são os principais veículos de exploração de petróleo na Guiana (PADULA et al, 2023). Esta análise está em conformidade com a crença predominante entre os estudiosos internacionais, especialmente aqueles que subscrevem uma visão mais materialista do sistema internacional, de que os fatores materiais são uma das principais razões para os Estados travarem guerras.
No entanto, é um assunto de debate até que ponto a luta pelo petróleo tem sido uma fonte dominante de conflito no sistema internacional. De acordo com Meierding (2020), as guerras que resultam diretamente do petróleo são raras, e o custo composto dos esforços militares faz com que o petróleo seja utilizado principalmente como um recurso a ser explorado durante uma guerra para trava-la, como foi durante a invasão Alemã da URSS, em vez de iniciá-la. Como diz a autora: “os obstáculos de invasão, de ocupação, aos obstáculos internacionais e aos investimentos na luta pelo petróleo sempre foram elevados. Ao contrário de outras guerras por recursos, as guerras clássicas por petróleo nunca pagaram seu custo” (MEIERDING, 2020, p.169, tradução nossa). Isso significa que, embora petróleo seja um fator a ser considerado, a disputa pelo Essequibo precisa ser avaliada sob uma perspectiva mais profunda.
Uma análise mais útil surge quando consideramos a profunda relação que existe entre considerações domésticas e internacionais quando se trata da elaboração e implementação da política externa dos Estados que compõem o Sistema Internacional. Como Robert Putman (1988) demonstra no seu artigo seminal Diplomacy and Domestic Politics: The Logic of Two-Level Games, os decisores políticos agem frequentemente na cena internacional tendo em conta os grupos de interesse nacionais e a dinâmica interna do poder. Tal como um jogador de póquer que faz uma jogada arriscada para adquirir mais fichas para usar em outra mesa, um governo pode implementar uma ação de política externa para garantir ainda mais a sua posição em casa, o que por sua vez aumenta a sua margem de manobra a nível internacional. Como diz o autor: “a abordagem de dois níveis reconhece que os decisores centrais se esforçam para conciliar simultaneamente os imperativos nacionais e internacionais” (PUTMAN, 1988, p.460).
Concluindo, a aposta de Maduro surge como resultado de duas circunstâncias. Em primeiro lugar, há o declínio relativo do poder de dissuasão americano, que também desempenhou um papel no ressurgimento de outros conflitos, como na Ucrânia e na Palestina. Em segundo lugar, há a sua posição política cada vez mais frágil como resultado da sua impopularidade, o estado depredado da economia venezuelana como resultado da inflação e das sanções, e a possibilidade de perder as próximas eleições. Dado que a reivindicação de Essequibo é algo que a grande maioria dos venezuelanos apoia, Maduro espera inflar o nacionalismo da população para aumentar a sua posição interna, como outrora fizera a ditadura argentina na questão das Malvinas. Os desafios internos acima mencionados, no entanto, também diminuem a sua capacidade de realmente fazer valer esta reivindicação.
REFERÊNCIAS:
BULMER-THOMAS, Victor. La Historia Económica de América Latina Desde la Independencia. Ciudad de México: Fondo de Cultura Económica, 1998.
CHEATHAM, Amelia; ROY, Diana. Venezuela: The Rise and Fall of a Petrostate. Council on Foreign Relations, 22 dez. 2023. Disponível em: https://www.cfr.org/backgrounder/venezuela-crisis Acesso em 5 de janeiro 2024.
EICHENGREEN, Barry; EL-GANAINY, Asmaa; ESTEVES, Rui Pedro; MITCHENER, Kris James. Public Debt Through the Ages. International Monetary Fund, Janeiro 2019. Disponível em: https://www.imf.org/en/Publications/WP/Issues/2019/01/15/Public-Debt-Through-the-Ages-46503 Acesso em 5 janeiro de 2024.
MEIERDING, Emily. The Oil Wars Myth: Petroleum and the Causes of International Conflict. Ithaca: Cornell University Press, 2020.
PADULA, Raphael; CECÍLIO, Matheus de Freitas; DE OLIVEIRA, Igor Candido; PRADO, Caio Jorge. Guyana: Oil, Internal Disputes, the USA and Venezuela. Contexto Internacional, v.45, ed.1, p.1-25, Janeiro/Abril 2023. Disponível em: https://www.scielo.br/j/cint/a/vTqm4rBBDg6WRMt3NyLyKtF/?lang=en# Acesso em 5 de Janeiro de 2024.
PUTMAN, Robert D. Diplomacy and Domestic Politics: The Logic of Two-Level Games. International Organization, MIT Press, v. 42, ed. 3, p. 427-460, Verão 1998.
THE SOUFAN CENTER. IntelBrief: Border Dispute between Venezuela and Guyana Continues to Simmer. The Soufan Center, 18 de dezembro de 2023. Disponível em: https://thesoufancenter.org/intelbrief-2023-december-18/ Acesso em 5 de Janeiro de 2024.
