Matheus Castanho Virgulino, Internacionalista.

A história da humanidade é composta por uma série de processos complexos, interdependentes e mutualmente interligados. Como os átomos que formam a base da matéria de nosso universo, os povos individuais da humanidade formam partes de um todo, e cada um exerce influência sobre o outro, mesmo que esta influência se sinta no decorrer de muitas eras. A ascensão da modernidade trouxe esse fenômeno ao seu ponto de ebulição.

O período comumente referido como “o longo século XIX” foi seminal na construção da atual configuração do poder mundial, mais especificamente, na predominância do Ocidente no sistema internacional. Isto surgiu como resultado de diversas circunstâncias históricas, como o surgimento de estados centralizados, industrialização e ideologias de progresso, que levaram ao estabelecimento do que poderíamos chamar de “modernidade” (BUZAN, LAWSON, 2015). Estas, por sua vez, geraram uma dicotomia centro-periferia entre os países ocidentais, aqueles onde estas instituições da modernidade atingiram a sua maturidade, e o mundo não-ocidental que ainda se adapta, ou em alguns casos rejeita, estas mesmas instituições.

A China, e as suas muitas altercações ao longo dos últimos duzentos anos, resumiram este choque dicotómico de ideias e as suas ramificações de longo alcance. Durante a maior parte da sua história, e também hoje, a China desfrutou de um lugar de destaque entre as nações do mundo, como está para sempre consagrado na memória coletiva da humanidade como uma das suas maiores civilizações. Na época em que Roma e Atenas eram apenas aldeias pastoris, as terras dos rios Yangtze e Amarelo desfrutaram de milhares de anos de continuidade imperial. Lá vemos a criação do primeiro Estado centralizado com uma burocracia profissional dedicada ao manejo da administração pública (FUKUYAMA, 2011).

Durante séculos antes das Guerras do Ópio, a China via-se como o centro de uma ordem mundial que denominou “Tianxia” (天下), que significa “todos sob o céu”. Este conceito de excepcionalismo colocou o imperador chinês, ou o “filho do céu”, no ápice de um sistema hierárquico. Os estados vizinhos eram vistos como tributários, reconhecendo a superioridade cultural e política chinesa através de cerimónias diplomáticas e entrega de presentes (KISSINGER, 2011). Acreditava-se que a sua burocracia centralizada e a filosofia confucionista ofereciam o modelo para uma sociedade harmoniosa, incomparável aos “bárbaros” de seu entorno (POO, 2005). Esta autopercepção de superioridade, embora não isenta de desafios, moldou as interações da China com o mundo eurasiano durante milênios.

No século XV, os imperadores da dinastia Ming decidiram adotar uma política de isolacionismo, o que gradualmente resultou com que a China passasse a perder competitividade nos campos militares e econômicos, tendo mantido uma certa paridade até o século XVIII. Já na primeira metade do século XIX a diferença se tornara avassaladora, permitindo que os Britânicos vencessem a guerra do ópio mesmo em menores números. A nova ameaça externa do ocidente, assim como o declínio e resultante corrupção da tradicional burocracia da dinastia Qing plantaria as sementes para uma série de rebeliões, cuja maior foi a rebelião Taiping.

Períodos de instabilidade, enfraquecimento do poder central, e rebeliões rurais antes de subsequente reunificação sobre uma nova dinastia são padrões da história imperial Chinesa. Isso se dava a estrutura de poder com a divisão territorial de elites e a relação entre o Estado e o campesinato. Como dito por Burbank e Cooper (2019, p.63): “Para a China, a região central agrária, com seus recursos relativamente genéricos, mas vitais para a subsistência, serviam de instrumento para que senhores e camponeses se rebelassem contra as autoridades centrais, locais ou ambas.” As crises da dinastia Qing haviam necessitado a imposição de um regime de taxação mais severo, o que por sua vez incentivou mais rebeliões (LIU, 2007). Isso, combinado com crescentes percepções negativas da etnia Manchu da qual fazia parte os Qing e o crescimento do cristianismo por missionários estrangeiros criou as condições para a rebelião Taiping.

A Rebelião Taiping ocorreu entre 1850 e 1864, e foi desencadeada por um movimento messiânico do profeta camponês enigmático conhecido como Hong Xiuquan que, após ter entrado em contato com missionários e panfletos protestantes, se autodeclarou irmão de Jesus Cristo e convocou o campesinato para derrubar os Qing e estabelecer uma teocracia chamada de Reino Celestial Taiping (KUHN, 1978). O movimento, que iniciou-se em Guangxi, contou com amplo apoio popular, especialmente de minorias étnicas, como os hakka e cantoneses, devido à sua promessa da criação de uma utopia baseada na justiça social cristã e a igual distribuição de terras. O movimento teve grande sucesso inicial devido a disposição dos revoltosos de adotarem tecnologias e treinamento militar ocidental, até mesmo capturando a importante cidade de Nanquim. 

Eventualmente, a rebelião foi derrotada devido a conflitos internos e o apoio das grandes potências ao governo Qing, após 14 anos de guerra e milhões de mortos. O conflito civil deixaria profundas marcas na consciência dos Chineses, e preconizou demais revoluções internas que culminariam na formação da atual República Popular da China. Sua maior importância foi ser uma revolta baseada, pelo menos superficialmente, em ideias estrangeiras que quebravam com a tradição de continuidade imperial que caracterizou rebeliões anteriores. Foi, em suma, o resultado do choque cultural entre as novas ideias ocidentais e a cultura milenar chinesa.

Referências:

BURBANK, Jane; COOPER, Frederick.  IMPÉRIOS: Uma Nova Visão da História Universal. São Paulo: Editora Crítica, 2019.

BUZAN, Barry; LAWSON, George. THE GLOBAL TRANSFORMATION: History, Modernity and the Making of International Relations. Cambridge: Cambridge University Press, 2015.

FUKUYAMA, Francis. THE ORIGINS OF POLITICAL ORDER. New York: Farrar, Straus and Giroux, 2011.

KISSINGER, Henry. SOBRE A CHINA. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2011.

KUHN, Philip A. THE TAIPING REBELLION. In: TWITCHETT, Denis; FAIRBANK, John K (ed.). THE CAMBRIDGE HISTORY OF CHINA: Late Ch’ing, 1800-1911. Cambridge: Cambridge University Press, 1978. v. 10, cap. 6, p. 264-316.

LIU, Chang. PEASANTS AND REVOLUTION IN RURAL CHINA. Londres: Routledge Taylor & Francis Group, 2007.