Matheus Castanho Virgulino, internacionalista.

Questões de fé, governação, conflito e economia são assuntos interdependentes quando se trata da grande luta dialética da ascensão e queda das nações. A emergência do Estado moderno e da empresa capitalista situa-se num determinado contexto histórico do início da Europa moderna, com um processo notável que impulsionou ambas as tendências: a guerra dos oitenta anos entre a Holanda e a Espanha. Este, um conflito decenial que desempenharia um papel importante na formação das instituições socioeconômicas do Ocidente.

A região que hoje compreende os estados modernos dos Países Baixos, Bélgica e Luxemburgo é conhecida coletivamente em termos geográficos como os países baixos. Este nome surge do facto de muitas destas áreas próximas ao mar do Norte estarem abaixo ou ligeiramente acima do nível do mar, o que historicamente tornou estas terras propícias ao comércio nas cidades, especialmente ao longo da costa, e à produtividade agrícola no campo. Estas já foram as fronteiras do extremo nordeste do Império Romano e formam uma espécie de espaço de transição entre os mundos latino e germânico.

Ao longo da Idade Média, os países baixos emergiram como uma das regiões mais prósperas da Europa, dando impulso ao renascimento comercial das suas redes comerciais, especialmente através da lucrativa indústria da lã e dos têxteis, dos séculos XI ao XV (HUIZINGA, 2010). A sociedade que emergiu deste processo, embora nominalmente feudal, com os seus duques e condes jurando lealdade ao rei francês ou ao imperador do Sacro Império Romano, era relativamente urbanizada e burguesa. A sua religiosidade também não era tão controlada pela Igreja em Roma como outras partes da Europa Ocidental, com sociedades religiosas leigas e mais tarde o humanismo cristão com nomes como Erasmus de Rotterdam desempenhando papéis importantes (id.).

Do final do século XIV até a primeira metade do século XV, a maior parte da Holanda esteve sob o reinado dos duques Valois da Borgonha. Este conjunto de estados feudais sob uma união pessoal era um dos reinos mais ricos da cristandade e, com o casamento de Maria da Borgonha e do imperador Maximiliano I da Áustria em 1477, a maior parte caiu sob o domínio da dinastia dos Habsburgos, passando para o seu ramo que reinaram como reis da Espanha. Embora o governo dos Habsburgos tenha permanecido praticamente ininterrupto durante o reinado do tolerante Carlos V da Áustria e da Espanha, seu filho Filipe II alimentaria o fogo dos ressentimentos que estavam sendo trazidos com os ventos da reforma protestante.

O carácter religioso particular dos países baixos revelou-se um terreno fértil para a reforma religiosa, especialmente na forma do calvinismo trazido pelos huguenotes franceses. A ênfase de Calvino na ética de trabalho e na adoração individual a Deus foi apreciada pelas classes mercantis, enquanto os nobres, mais dominantes na região de Flandres, permaneceram fiéis à Igreja Católica (GEYL, 2001). A política de contrarreforma de Filipe II começou a atacar as antigas autonomias das províncias holandesas, buscando governo direto de Madrid, o que causou ressentimento nas populações protestantes.

A guerra continuaria com tréguas intermitentes até 1648, tornando-se posteriormente parte do conflito maior da Guerra dos Trinta Anos (LEM, 2018). Neste período, os holandeses emergiram como uma potência naval formidável que derrubou a hegemonia da Espanha nos mares. A necessidade de arrecadar fundos para a guerra levou a diversas inovações financeiras, incluindo a criação da primeira bolsa de valores e dos primeiros bancos estatais (FERGUSON, 2017). Mais do que isso, os holandeses forjaram um formidável império colonial que se estendia do Caribe e do nordeste do Brasil até as ilhas de especiarias da Ásia.

Os holandeses entrariam numa Idade de Ouro que os levaria a incríveis méritos científicos, filosóficos e artísticos, com nomes como Spinoza e Rembrandt. Mais importante ainda, os Países Baixos apresentariam uma nova perspectiva sobre os direitos e a natureza dos Estados, baseada na sua própria luta nacional. Hugo Grotius, o renomado jurista e filósofo, defenderia a soberania das nações baseada em uma lei natural e universal, com regras acerca do uso da guerra e da força, independente de imposições baseadas no poder de príncipes e déspotas. Assim, o conceito de direito internacional nasceu juntamente com a incepção do sistema estatal moderno.

Como argumentou o famoso sociólogo Max Weber (2001), a ética protestante dos Países Baixos foi essencial para o desenvolvimento do capitalismo moderno, como um sistema econômico baseado na procura do lucro. O distanciamento do poder estatal na gestão da atividade econômica surgiu como resultado de uma visão mais individualista do próprio trabalho, nascida de uma concepção religiosa de salvação individual. Em vez de serem vistos como pecados de usura e ganância, os frutos do empreendimento e do crédito começaram a ser vistos como sinais do favor divino.

A Idade de Ouro Holandesa começaria a desaparecer com as guerras de Luís XIV nas últimas décadas do século XVII, mas o seu legado lançaria uma longa sombra sobre a Europa. Suas inovações financeiras seriam adotadas por outras potências Europeias, em especial no Reino Unido, cuja revolução financeira preconizou sua revolução industrial. As reformas militares feitas pelos Holandeses na sua luta contra a Espanha criariam as primeiras formações militares utilizando pólvora em larga escala, que seriam padrões nas guerras até Napoleão. A criação de uma república que oferecia grandes autonomias e tolerâncias aos seus cidadãos serviu de inspiração para as concepções políticas do iluminismo, que preconizaram a democracia liberal moderna.

Referências: 

GEYL, Pieter. History of the Dutch-Speaking Peoples. London: Phoenix Press, 2001.

LEM, Anton Van der. Revolt in the Netherlands: The Eighty Years War, 1568-1648. London: Reaktion Books, 2018.

HUIZINGA, Johan. Outono da Idade-Média. São Paulo: Cosac & Naify, 2010.

WEBER, Max. The Protestant Ethic and the Spirit of Capitalism. New York: Routledge, 2001.

FERGUSON, Niall. A ASCENSÃO DO DINHEIRO: A História Financeira do Mundo. São Paulo: Editora Crítica, 2017.