
Porakê Munduruku – Articulador no Pará de Kabiadip – Articulação Munduruku no Contexto Urbano, Integrante do Tekó – Coletivo de Artivismo Indígena da Região Metropolitana de Belém
Em tese, os próprios povos indígenas são os únicos com legitimidade para definir quem é, ou não, indígena. Mas antes precisamos saber quem somos. Afirmar que só indígenas podem definir essa identidade pressupõe uma definição de quem somos nós. Quem colocou em um mesmo balaio centenas de povos originários de Abya Yala (este continente que o colonizador chamou de América) , com línguas, aparências e culturas diversas, foi o colonizador. Antes da invasão europeia não existia uma identidade indígena única.
A identidade indígena nos foi imposta como parte do processo colonial de racialização, ou seja, de segregação e desumanização de povos colonizados. O objetivo do colonizador ao unificar incontáveis etnias sob uma única categoria racial foi a de apagar nossas memórias, nossa diversidade e nosso vínculo ancestral com o território. Raça e etnia são coisas diferentes, embora relacionadas. E nosso pertencimento também se dá nessas duas dimensões.
Foi o colonizador quem criou e nos impôs o “indígena” enquanto uma categoria racial generalizante, mas cabe a nós, indígenas, decidir o que faremos com isso, para além das identidades étnicas que nos vinculam, ou não, a um povo determinado ou a uma comunidade específica.
Segundo dados do censo mais recente do IBGE (2023), 63,27% da população indígena do Brasil vive fora dos territórios demarcados. São quase dois terços do total de indígena vivendo, em sua maioria, no perímetro urbano e periurbano por todo o país. Sem acesso às políticas públicas voltadas para pessoas indígenas que têm seu alcance limitado aos territórios demarcados pelo Estado brasileiro. Este apagamento sistemático da presença e do pertencimento indígena fora dos territórios demarcados é uma parte essencial do projeto de dominação colonial.
Temos insistido (Munduruku, 2022) que a essência do estar no mundo do colonizador é separar, roubar e mentir. Ele separa para dominar, domina para roubar e mente para tentar encobrir seus crimes. E uma das maiores mentiras coloniais, que muitos de nós aceitam sem questionar, é a de que nossos ancestrais indígenas desconheciam as cidades e a vida urbana.
Essas mentiras servem para encobrir o fato de que a ciência, a engenharia e a urbanidade não desembarcaram aqui nas caravelas. Tão pouco a vida urbana pré-colonial se limitou às civilizações mesoamericanas e andinas – como os antigos impérios Maia e Inca – , onde, reconhecidamente, eficientes sistemas de esgoto, canalização de água e arquiteturas complexas, superavam as caóticas e insalubres metrópoles europeias.
Mesmo nos territórios que viriam a formar o Brasil – pelo menos na ilha do Marajó, no Alto Xingu e no Baixo Amazonas – , nossos ancestrais já mantinham suas grandes cidades, séculos antes da chegada do invasor europeu. E está cada vez mais evidente, por estudos arqueológicos, genéticos e etnobotânicos, como aqueles citados por Veiga (2018), que a supostamente selvagem e impenetrável floresta amazônica foi cultivada, por milhares de anos, por mãos humanas. Nosso desafio é rememorar essas outras possibilidades de urbanidade.
A luta por demarcação é fundamental para todos nós, indígenas, mas ela tem como objetivo restringir a sanha destruidora do colonizador, não as possibilidades de nossa existência como povos originários. O colonizador tenta colocar essa nossa luta justa e necessária contra nós, quando restringe nosso direito de ser indígenas aos limites estritos dos territórios demarcados.
Referências bibliográficas
IBGE. Brasil tem 1,69 milhão de indígenas, aponta Censo 2022. Gov.br, 2023. Disponível em: <https://www.gov.br/secom/pt-br/assuntos/noticias/2023/08/brasil-tem-1-69-milhao-de-indigenas-aponta-censo-2022> Acesso em: 15 abr. 2024.
MUNDURUKU, Porakê. O que os povos indígenas têm a ensinar sobre a defesa do meio ambiente? Revista Resistência N° 2. Usina Editorial: São Paulo, p. 44-51, jul. 2023.
VEIGA, Edilson. Cientistas descobrem indícios de que Amazônia tinha agricultura há 4,5 mil anos. BBC News Brasil, 2018. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-44929482> Acesso em: 15 abr. 2024.
