Alciane Carvalho Dias e Alice Cristina Ferreira, acadêmicas do 6° semestre de Relações Internacionais.

Ficha Técnica:

Ano: 1968

Diretor: Roger Vandim

Distribuição: Paramount Pictures

Gênero: Ficção científica/comédia

País de Origem: Estados Unidos

Barbarella é uma obra de ficção científica que se tornou icônica tanto por sua estética futurista quanto por sua representação de uma protagonista feminina sexualmente emancipada. Contudo, para além de sua superfície estética, o filme revela profundas camadas de significado que se entrelaçam com questões de gênero e poder colonial, tornando-o um objeto de estudo relevante para as teorias feminista e pós-colonial nas Relações Internacionais. Este ensaio tem como objetivo explorar como a personagem tem a capacidade de refletir e subverter as estruturas de dominação patriarcal e colonial, oferecendo uma crítica interseccional das dinâmicas de poder global e das representações de gênero na cultura popular (MOHANTY, 1988).

A Teoria Feminista das RI desafia as estruturas patriarcais que permeiam tanto as relações internacionais quanto as representações culturais. No contexto de Barbarella, a protagonista pode ser vista como uma figura paradoxal, que, por um lado, é retratada como uma mulher emancipada, que exerce controle sobre sua sexualidade e navega autonomamente em um universo vasto e perigoso. Por outro, sua representação está profundamente enraizada em estereótipos de gênero que a objetificam e a reduzem a um ícone sexual.

A câmera frequentemente fetichiza seu corpo, e as situações em que ela se encontra, apesar de ostensivamente colocarem-na em uma posição de poder, muitas vezes a colocam em contextos que reforçam a dominação masculina. Assim, Barbarella pode ser lido como uma metáfora para as limitações que as mulheres enfrentam nas RI, onde sua participação é frequentemente condicionada pela necessidade de se conformar a normas masculinas e patriarcais.

A teórica Judith Butler, em Problemas de Gênero (1990), propõe que o gênero é performativo, construído através de atos repetidos que imitam normas estabelecidas. Barbarella pode ser vista como performando uma feminilidade que é ao mesmo tempo subversiva e conformista. Embora ela seja uma figura ativa e sexualmente emancipada, essa emancipação é expressa de maneiras que continuam a atender aos desejos masculinos, reafirmando a norma heteronormativa ao invés de desafiá-la radicalmente. Assim, a personagem encarna a tensão entre emancipação e conformidade com as normas patriarcais.

Já a Teoria Pós-Colonial das RI examina as consequências duradouras do colonialismo e como essas dinâmicas de poder continuam a se manifestar nas relações globais (SAID, 1978). Em Barbarella, as interações da protagonista com diferentes espécies e planetas podem ser vistas como uma representação simbólica das relações coloniais. Barbarella, uma agente de uma civilização avançada, navega por mundos “primitivos”, impondo sua visão de ordem e justiça, o que pode ser interpretado como uma metáfora para o imperialismo cultural e a imposição de valores ocidentais sobre culturas não ocidentais (STAM; SHOHAT, 1994).

Gayatri Spivak, em seu ensaio “Pode o Subalterno Falar?” (1988), critica a forma como as vozes dos marginalizados são frequentemente apropriadas ou silenciadas pelas narrativas ocidentais. No filme, os personagens alienígenas e os mundos que Barbarella visita são frequentemente apresentados de forma exótica e estereotipada, ecoando as representações orientalistas criticadas por teóricos pós-coloniais como Spivak e Edward Said. Esses mundos e suas culturas são retratados como “outros” que precisam ser salvos ou civilizados pela protagonista, uma narrativa que espelha a lógica colonialista de dominação e controle. A missão de Barbarella pode, portanto, ser interpretada como uma metáfora para a intervenção ocidental em sociedades consideradas inferiores, reforçando as hierarquias globais de poder e perpetuando a subordinação dos “outros” coloniais.

Ao combinar as teorias feminista e pós-colonial, podemos aplicar uma abordagem interseccional para entender como Barbarella simultaneamente reflete e subverte as dinâmicas de gênero e colonialismo. A interseccionalidade permite explorar como diferentes formas de opressão se sobrepõem e se reforçam, oferecendo uma crítica mais profunda das estruturas de poder.

Por exemplo, a forma como a personagem é objetificada durante o filme não apenas reflete a dominação patriarcal, mas também pode ser vista como uma extensão da lógica colonial, onde o corpo feminino é exotizado e apropriado de maneira semelhante às terras e culturas colonizadas. Além disso, a própria narrativa do filme, onde uma mulher branca ocidental “civiliza” mundos “primitivos”, pode ser interpretada como uma reprodução da figura colonialista feminina, que é simultaneamente uma agente de poder e uma vítima de objetificação.

Kimberlé Crenshaw, que cunhou o termo interseccionalidade, argumenta que as opressões de raça, gênero e classe não podem ser entendidas isoladamente, mas sim em conjunto. A análise de Barbarella através desta lente revela como a objetificação da protagonista não apenas reflete a dominação patriarcal, mas também uma extensão da lógica colonial. Dessa forma, Barbarella representa a intersecção de múltiplas formas de dominação e subordinação, tanto de gênero quanto colonial.

Esta obra cinematográfica oferece uma rica oportunidade para explorar as complexas intersecções entre gênero, poder e colonialismo no contexto das Relações Internacionais. Embora o filme possa inicialmente parecer um exemplo simples de ficção científica escapista, uma análise crítica baseada nas teorias feminista e pós-colonial revela como ele reflete e perpetua dinâmicas de poder que continuam a moldar tanto as representações culturais quanto as relações globais. Assim, Barbarella serve como um lembrete da importância de abordar as representações de gênero e poder de maneira interseccional, reconhecendo as múltiplas camadas de opressão e resistência que configuram as narrativas globais.

REFERÊNCIAS

ADORO CINEMA. Barbarella (1968), [s.d]. Disponível em: https://www.adorocinema.com/filmes/filme-35177/ . Acesso em: 4 set. 2024.

BAUMANN, R. Tales of the TARDIS and Barbarella: British and European Science Fiction in the 1960s and 1970s, 2020. Indiana University Press.

BLOCK, M. H.; MARQUES, R. R. Securitização Generificada: Mapeando a categoria gênero nos estudos em securitização. In: Encontro da Associação Brasileira de Relações Internacionais (ABRI), 9., 2023, Belo Horizonte. Anais SISSUL. Minas Gerais: PUC-Minas, 2023. p. 1-19.

BUTLER, J. Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity, 1990. Routledge.

IGNACIO, Julia. O que é interseccionalidade?. Politize, 2020. Disponível em: https://www.politize.com.br/interseccionalidade-o-que-e/. Acesso em: 07 set. 2024.

MOHANTY, C. Under Western Eyes: Feminist Scholarship and Colonial Discourses, 1988. Feminist Review.

PEREIRA, S. C. A. “Pode o Subalterno falar?”. In: Enciclopédia de Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia, 2022. Disponível em: https://ea.fflch.usp.br/obra/pode-o-subalterno-falar. Acesso em: 6 set. 2024.

SAID, E. W. Orientalism, 1978. Pantheon Books.

SANTOS, T. S. et al. O Feminismo como teoria das Relações Internacionais. Relações Exteriores, 2023. Disponível em: https://relacoesexteriores.com.br/feminismo-teoria-relacoes-internacionais/. Acesso em 05 set. 2024.

STAM, R; SHOHAT, E. Unthinking Eurocentrism: Multiculturalism and the Media, 1994. Routledge.