
Alice Cardoso – 6º semestre de Relações Internacionais da Unama.
A palavra “democracia”, como é conhecida na contemporaneidade, surgiu na Grécia antiga, na cidade de Atenas, como demokracia onde “demo” se referia ao povo e “kracia” era usada para se referir ao governo, neste sentido, a palavra foi concebida para caracterizar um governo do povo, ou seja, um governo exercido por muitos (Blog Mackenzie, s.d) No entanto, até mesmo na civilização ateniense, que criou o conceito de democracia, o estado democrático não era pleno em sua aplicação e não se estendia a todas as pessoas, apenas aqueles que eram considerados cidadãos gozavam de tal direito – o que excluía mulheres, escravos, jovens fora da idade de serviço militar e estrangeiros (Blog Mackenzie, s.d)
Ao surgir, a democracia era direta (na qual os cidadãos participavam pessoalmente das decisões políticas) e aqueles que podiam se reuniam em praça pública, em uma Assembleia Popular, para discutir e votar os assuntos governamentais. Logo após surgiram outros dois tipos de democracia: a indireta ou representativa (onde o povo elege um representante para tomar as decisões, e que é também a mais utilizada hoje em dia) e a semidireta ou participativa (nesta as duas últimas democracias funcionam juntas, há a eleição de um representante governamental e também a participação do povo por meio de plebiscitos, referendos e etc.) (Jusbrasil, 2020)
Ao longo do tempo, os países foram adotando os modelos democráticos que mais se encaixavam com suas formas de governo. No entanto, apesar disto, diversas intercorrências ocorreram, e ocorrem, provocando a ruptura destes estados democráticos. A ditadura, exemplificativamente, foi e é uma destas formas de cessação da democracia, haja vista que esta infringe todos os preceitos democráticos.
No Brasil, por exemplo, a ditadura se iniciou em 1964 e findou em 1985. Este período foi marcado por diversas violações dos direitos humanos no país, como centenas de casos de desaparecimento e homicídio, prisões arbitrárias, torturas, censura das mídias e coerção política (USP, s.d) Até hoje, segundo um levantamento feito pela Comissão Nacional da Verdade, 210 pessoas continuam desaparecidas e seus familiares sem repostas (PUC-SP, s.d)
No direito da Roma antiga, foi criado o termo “Homo sacer” , o qual era utilizado para se referir a indivíduos que cometeram algum delito contra os deuses e por isto passavam a não mais ter a proteção do Estado, estando a sua própria sorte e à mercê da “vingança dos deuses”.
O filósofo italiano Giorgio Agamben passou a utilizar este termo para expressar sua crítica contra as ações omissas e fatais dos Estados e, por conseguinte, a volatilidade da democracia. Em seu livro “Homo Sacer: O poder Soberano e a Vida Nua” o filósofo faz uso do termo para descrever as pessoas que são despidas de humanidade pela sociedade, ou seja, aquelas que passam a não mais serem consideradas como cidadãos ou até mesmo seres humanos, e que, sendo assim, perdem os privilégios e direitos dos mesmos, logo a morte ou tortura do homo sacer não seriam relevantes ou mesmo considerados crimes. Agamben diz que toda sociedade delimita quem serão os homo sacer com base na conveniência de suas ações estatais.
Em Atenas, a exclusão de diversas pessoas do uso da democracia foi, de certo jeito, uma forma de delimitar quem eram os cidadãos e quais eram os homo sacer (os excluídos). Já atualmente, por exemplo, o conflito entre Israel e Palestina tem deixado diversos civis mortos dos dois lados; a ONU divulgou um relatório afirmando que ambos os lados cometeram crimes de guerra, incluindo tortura, assassinato, morte intencional e tratamento desumano ou cruel (Agência Brasil, 2024), porém, a lista de crimes realizados por Israel neste conflito é mais extensa e abrange não somente crimes de guerra como também crimes contra a humanidade, entre eles: a utilização da fome como método de guerra, o bombardeio de hospitais com civis dentro, e uma acusação de genocídio (ONU News, 2024)
Segundo um relatório divulgado este ano (Agência Brasil, 2024), mais de 35 mil pessoas, em suma mulheres e crianças, foram mortas devido a este conflito. Sob a perspectiva do homo sacer de Agamben, os dois Estados estão conscientemente escolhendo se importar ou não com as mortes e torturas da população, escolhendo olhar para os que estão sendo duramente impactados por esta guerra como efeitos colaterais e assim, definindo seus homo sacer, o que, também, caracteriza uma grave ruptura do Estado democrático de Direito.
Por falar neste, o Estado democrático de Direito é um conceito jurídico que se refere ao Estado no qual todos os direitos humanos são garantidos e respeitados, e que, frente a isto, limita o poder do estatal em relação aos cidadãos. (Jusbrasil, 2019) Todavia, este conceito é violado mais vezes do que se percebe, não apenas em cenários de guerra, ditadura ou opressão, mas também de formas mais discretas e menos discutidas.
O economista brasileiro, Ladislau Dowbor, fala em seu texto “Financeirização: Nova ordem econômica e social” sobre o que ele denomina de “Financial Takeover” que seria a tomada de controle dos mercados financeiros sobre o que consideramos um direito humano básico, como direito à moradia e o direito de acesso a água. Dowbor exemplifica durante o seu texto que cada vez mais as indústrias estão precificando itens que deveriam ser de livre acesso as pessoas, haja vista que são cruciais para a sobrevivência, a água se tornou uma comodity, as empresas estão controlando que tem acesso a determinados bairros por meio de artifícios como a gentrificação, e os alimentos estão ficando cada vez mais caros e escassos. Todas estas ações elucidam como o Estado democrático de poder está progressivamente ruindo.
Destarte, o que se pode concluir, a partir dos aspectos abordados anteriormente, é que a democracia e o Estado Democrático de Direito são essenciais para o estabelecimento de uma vida digna para as pessoas, entretanto, desde a criação do que chamamos hoje de democracia, os Estados estão falhando em implementar, de maneira eficaz e ampla, tais direitos. E aos olhos das teorias de Giorgio Agamben, sobre o “Homo sacer”, e de Ladislau Dowbor com o “Financial Takeover”, a falha dos Estados de promover uma democracia plena está encaminhando as sociedades para uma descontinuação cada vez mais permanente das rupturas de um governo democrático popular.
Comissão independente lista crimes de guerra e contra a humanidade em Gaza e Israel. Disponível em: <https://news.un.org/pt/story/2024/06/1833076>. Acesso em: 23 set. 2024.
Ditaduras Militares – Portal Contemporâneo da América Latina e Caribe. Disponível em: <https://sites.usp.br/portalatinoamericano/espanol-dictaduras-militares>. Acesso em: 23 set. 2024.
Estado Democrático de Direito Disponível em: <https://www.jusbrasil.com.br/artigos/estado-democratico-de-direito/729515763#:~:text=O%20Estado%20democr%C3%A1tico%20de%20direito%20%C3%A9%20um,dos%20direitos%20sociais%20e%20dos%20direitos%20pol%C3%ADticos.>. Acesso em: 23 set. 2024b.
Financeirização: Nova Ordem Econômica e Social – Por Ladislau Dowbor. Disponível em: <https://ecofalante.org.br/blog/economia-2020/>. Acesso em: 23 set. 2024.
Homo sacer, sujeitos abandonados ao crime. Disponível em: <https://appoa.org.br/correio/edicao/240/homo_sacer_sujeitos_abandonados_ao_crime/158>. Acesso em: 23 set. 2024.
Homo sacer, sujeitos abandonados ao crime. Disponível em: <https://appoa.org.br/correio/edicao/240/homo_sacer_sujeitos_abandonados_ao_crime/158>. Acesso em: 23 de set. 2024
Mortos e desaparecidos Disponível em: <https://www.pucsp.br/comissaodaverdade/mortos-e-desaparecidos-contextualizacao.html>. Acesso em: 23 de set. 2024.
ONU conclui que Israel e Hamas cometeram crimes de guerra. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2024-06/onu-conclui-que-israel-e-hamas-cometeram-crimes-de-guerra Acesso em: 23 de set. 2024
O que é democracia e qual é a sua origem? Disponível em: <https://blog.mackenzie.br/vestibular/atualidades/o-que-e-democracia-e-qual-e-a-sua-origem/ >. Acesso em: 23 de set. 2024.
Você Sabe Qual a Modalidade de Democracia Existente no Brasil? Disponível em: <https://www.jusbrasil.com.br/artigos/voce-sabe-qual-a-modalidade-de-democracia-existente-no-brasil/1163883870>. Acesso em: 23 set. 2024.
