Alciane Carvalho Dias, acadêmica do 6º semestre de Relações Internacionais

Dona Onete, nascida Ionete da Silveira Gama em 1938, na cidade de Cachoeira do Arari, Marajó, já foi professora de de história e estudos paraenses, e agora, uma das maiores representantes da música popular amazônica, patrimônio Cultural e Imaterial do estado, especialmente conhecida por reviver e modernizar ritmos tradicionais como o carimbó e o banguê (ITAÚ CULTURAL, 2024). Sua trajetória é única não apenas por seu talento artístico, mas também por ter alcançado o sucesso após os 70 anos, o que desafia as normas da indústria musical brasileira, que geralmente privilegia a juventude e artistas de centros urbanos mais desenvolvidos. A marajoara também se destaca por letras que celebram a vida, o amor e a cultura do Pará. A partir de sua música, ela se tornou uma referência cultural do Norte do Brasil, levando os ritmos amazônicos ao reconhecimento internacional.

Para compreender a importância de Dona Onete e a representatividade que ela carrega, a teoria pós-colonial oferece uma lente poderosa para analisar como sua obra articula questões de resistência cultural e empoderamento de vozes marginalizadas.A teoria pós-colonial é uma abordagem acadêmica que busca entender os efeitos culturais, políticos e econômicos da colonização, mesmo após o fim do colonialismo formal.

Segundo o teórico Homi Bhabha (1994), o pós-colonialismo questiona as narrativas dominantes impostas pelos colonizadores e valoriza as formas de resistência cultural que emergem dessas sociedades. No caso da cantora, sua música pode ser entendida como uma forma de resistência que valoriza tradições culturais amazônicas que foram, historicamente, marginalizadas tanto pelo projeto colonial quanto pelo desenvolvimento desigual no Brasil. Por exemplo, na música “Boto Namorador”, a marajoara celebra uma lenda amazônica, mostrando como tradições orais e mitos regionais são centrais para a identidade local. Isso reflete a ideia de Homi Bhabha sobre o resgate de culturas marginalizadas e silenciadas pela colonização. Ao reviver e popularizar essas histórias, ela desafia a hegemonia cultural que historicamente minimizou ou exotizou as narrativas amazônicas.

O resgate de culturas marginalizadas é um dos principais pontos abordados pelos teóricos desta vertente que, eles abordam como durante o colonialismo, as sociedades do Sul-Global foram vistas como inferiores ou primitivas. Para Edward Said (1978), o processo de dominação não se deu apenas no campo econômico e militar, mas também no simbólico, onde as culturas locais foram desvalorizadas e silenciadas.

Dona Onete, ao promover ritmos como o carimbó e o banguê, atua diretamente no resgate dessas tradições culturais. Ela não apenas preserva esses ritmos, mas os revitaliza para uma nova geração, transformando práticas culturais que poderiam ter sido esquecidas em elementos contemporâneos da música popular. A valorização dessas formas de expressão é um exemplo claro de resistência à hegemonia cultural que, como aponta Said, foi imposta durante e após o colonialismo.Ademais, a teoria também explora como a hegemonia cultural ocidental continua a influenciar as sociedades pós-coloniais, levando muitas vezes à desvalorização de culturas locais em favor de formas de expressão consideradas mais “modernas” ou “universais”. Stuart Hall (1996) argumenta que a globalização muitas vezes promove uma homogeneização cultural, onde certas expressões ocidentais se tornam dominantes em detrimento das culturas locais.

Nesse sentido, ao promover a música amazônica, desafia essa hegemonia. Ela mostra que os ritmos e tradições locais não só têm valor, mas também podem ser inovadores e relevantes globalmente. Sua música carrega elementos das tradições indígenas e africanas, que, segundo Hall, são frequentemente marginalizadas pela narrativa cultural dominante. Assim, a musicista contribui para a pluralidade cultural, afirmando que a Amazônia tem uma cultura rica e relevante no mundo contemporâneo.Outro ponto importante dentro da teoria pós-colonial é a reconstrução do espaço e da identidade após o colonialismo. A Amazônia, historicamente, foi retratada como uma fronteira inexplorada, uma reserva de recursos naturais, ignorando-se a rica diversidade cultural e social que sempre existiu na região.

A artista, ao celebrar a vida cotidiana do Pará e sua conexão com a natureza, reconstrói a imagem da Amazônia não apenas como uma região de riquezas naturais, mas como um espaço de vitalidade cultural. Essa ressignificação do espaço amazônico, conforme estudado por autores como Aníbal Quijano (2000), desafia a visão reducionista que ainda persiste em muitos discursos coloniais e pós-coloniais. Dona Onete, portanto, posiciona a cultura amazônica no centro de sua obra, questionando as narrativas que reduzem a Amazônia a um local apenas de exploração econômica.Além disso, a teoria pós-colonial enfatiza o empoderamento de vozes marginalizadas, especialmente as que foram historicamente silenciadas. Ionete, sendo mulher, idosa e amazônica, se encaixa perfeitamente nesse perfil. Em um cenário musical dominado por vozes masculinas e jovens, ela rompe com estereótipos ao atingir o auge de sua carreira já na terceira idade.

Como Gayatri Spivak (1988) argumenta em seu famoso texto “Pode um subalterno falar?”, as mulheres de contextos pós-coloniais frequentemente têm suas vozes abafadas pelas estruturas de poder, tanto coloniais quanto pós-coloniais.Ionete, ao contrário, consegue romper essas barreiras e trazer uma perspectiva única ao cenário musical brasileiro e internacional, evidenciando que a experiência amazônica feminina também é digna de ser ouvida. Em sua canção “Proposta indecente” discute de forma bem-humorada questões de amor e relacionamentos, mas pode ser lida como um questionamento das normas impostas sobre as mulheres, especialmente aquelas da terceira idade. Isso se conecta à ideia de empoderamento de vozes marginalizadas discutida por Spivak, que questiona a subalternidade feminina nas sociedades pós-coloniais.

Por fim, é importante ressaltar que a música de Dona Onete também se configura como uma forma de resistência cultural. Para Frantz Fanon (1961), a cultura em contextos pós-coloniais pode ser um veículo de resistência contra a dominação, e é exatamente isso que a artista faz. Suas canções, além de celebrarem o cotidiano e os amores do Pará, carregam uma forte dimensão política ao promover a cultura amazônica no cenário global. Em “Jamburana”, a artista fala sobre o jambu, uma planta típica da região amazônica, celebrando aspectos da culinária e cultura local. Esse tipo de música se alinha com o conceito de resistência cultural, discutido por Fanon, ao destacar a riqueza cultural e natural da Amazônia como algo que merece reconhecimento e celebração.

A cantora se destaca em festivais internacionais e recebe reconhecimento em diversas partes do mundo, Dona Onete usa sua música para construir uma narrativa de resistência contra a marginalização cultural, elevando as tradições amazônicas a um novo patamar de reconhecimento. Essa utilização da arte como forma de “soft power”, conforme discutido por Joseph Nye (2004), é um exemplo de como a cultura pode influenciar percepções globais e fortalecer a posição de regiões historicamente marginalizadas.

Em síntese, a teoria pós-colonial oferece uma estrutura robusta para entender a trajetória de Dona Onete. Sua música, ao celebrar as tradições e a cultura amazônica, funciona como uma forma de resistência às narrativas dominantes impostas pelo colonialismo e pela centralização do poder cultural no Brasil. Ela consegue reconstruir o espaço amazônico, empodera vozes marginalizadas e desafia a hegemonia cultural ocidental, mostrando que a cultura amazônida não é apenas relevante, mas também essencial para o cenário global contemporâneo. Ao fazer isso, ela se posiciona como uma verdadeira representante da resistência cultural pós-colonial.

Referências Bibliográficas:

BHABHA, Homi K. The Location of Culture. New York: Routledge, 1994.

FANON, Frantz. Os condenados da terra. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.

HALL, Stuart. Da diáspora: Identidades e mediações culturais. 2. ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.

ITAÚ CULTURAL. Dona Onete. Enciclopédia Itaú Cultural, 1 out. 2024. Disponível em: https://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa640289/dona-onete. Acesso em: 2 out. 2024.

NYE, Joseph S. Soft power: The means to success in world politics. New York: PublicAffairs, 2004.

PASSOS, Gésio. Dona Onete: rainha do carimbó agora é patrimônio do Pará. Agência Brasil, 8 set. 2023. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/radioagencia-nacional/cultura/audio/2023-09/dona-onete-rainha-do-carimbo-agora-e-patrimonio-do-para. Acesso em: 2 out. 2024.

QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del poder, eurocentrismo y América Latina. In: LANDER, Edgardo (Org.). La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales. Perspectivas latinoamericanas. Buenos Aires: CLACSO, 2000. p. 201-246.

SAID, Edward W. Orientalismo: O Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar?. Belo Horizonte: UFMG, 2010.