Matheus Castanho Virgulino, internacionalista.

O Oriente Médio, mais do que qualquer outra região do mundo, é uma terra de contrastes. Lá, desertos encontram florestas de sidras, pobreza carente coexiste com riqueza brilhante, línguas mais antigas que Cristo são faladas entre edifícios e cidades modernas, e sonhos de paz e prosperidade existem entre pesadelos de guerra e sectarianismo. Nesse sentido, a mais recente iteração de ações beligerantes mútuas entre Irã e Israel é uma ressonância bastante familiar da complexidade da região.

A rivalidade entre Irã e Israel tem uma dimensão geopolítica que excede em muito a guerra na Palestina e pode ser melhor descrita como uma Guerra Fria multifacetada envolvendo diversos atores regionais e alianças externas. Os últimos ataques são, de certa forma, uma aproximação em direção a um conflito que, por todas as razões práticas, já estava em vigor muito antes de qualquer míssil ser lançado. Trata-se de um embate prolongado que tem no seu cerne a dimensão ideológica da questão Palestina, a securitização da política externa Israelense e as ambições Iranianas no seu entorno geográfico.

A beligerância do atual governo de Benjamin Netanyahu em Israel, tendo este atrasado negociações de paz e adotado regras de engajamento bélico que favorecem a ampliação do conflito, pode ser vista como uma tentativa de aproveitar-se da atual crise para solucionar na base da força seus desafios externos e internos. Visando concentração de autoridade no âmbito interno e restauração do poder israelense no âmbito externo, a reatividade impregnada na atual estratégia de guerra da administração de Netanyahu preconiza cada vez maiores demonstrações de poder para manter-se ativa, mesmo que ao custo de vidas e de prestígio diplomático. Pode-se dizer que a atualmente Israel carece de uma política externa efetiva, no lugar tendo ações unilaterais de um primeiro-ministro disposto a cruzar as linhas vermelhas como maneira de tirar o foco de sua impopularidade com o eleitorado Israelense (PINKAS, 2024, tradução nossa).

Tratando-se do Irã, sua posição na atual balança é precária. Desde a Revolução Iraniana de 1979 comprometeu-se a salvaguardar a causa Palestina em desafio a Israel. Essa estratégia surgiu como maneira de exercer influência sobre os Estados árabes sunitas, além de manter o denominado “eixo de resistência” das milícias islâmicas em países vizinhos. Essa estratégia que visava criar uma certa profundidade estratégica para a República Islâmica acabou por estender demasiadamente seus recursos, tendo que apoiar logística e militarmente suas “proxies” pelo fato do Irã não ser estável o suficiente, nem militarmente poderoso o bastante para entrar em um conflito direto com Israel. Somando a isso o despotismo religioso presente no país, que cada vez mais canaliza resistências da população, cria-se um ambiente onde o apelo ao nacionalismo se torna um “bode espiatório” do regime dos aiatolás. Em suma, o Irã “busca compensar o seu limitado poder de fogo convencional patrocinando intervenientes subestatais e ganhando a capacidade de potencialmente projetar influência por meio de aliados” (AKBARZADEH, 2019, p.321, tradução nossa).

Esta conjunção de fatores faz com que o embate estenda-se para a Síria, o Líbano e o Golfo Persa, regiões onde Israel sente que deve neutralizar aliados Iranianos e o Irã sente que precisa proteger e equipar estes mesmos grupos. Uma peça central desta dinâmica é o grupo xiita Hezbollah (Partido de Deus) nascido com a invasão Israelense do Líbano em 1982 e principal instrumento de retaliação do Irã contra Israel (FRIEDMAN, 1989). O grupo, inspirado na Guarda Revolucionária Iraniana (Pasdaran), combateu de maneira efetiva uma incursão Israelense em 2006 e desde então tem feito ataques contra sua fronteira norte, o que se intensificou desde o ressurgimento da guerra em Gaza.

O Mossad, Serviço de Inteligência Israelense, tem concentrado muitos de seus esforços nas últimas décadas para se infiltrar e enfraquecer o Hezbollah. Tendo o grupo aumentado seus ataques como resposta às investidas em Gaza, Israel viu a oportunidade de retaliação. Um ciberataque acabou por eliminar a maior parte da estrutura de comando do Hezbollah por meio da detonação de ferramentas de comunicação conhecidas como “Pagers” usados pelo grupo armado. O conflito atingiu novos ápices após Israel realizar um ataque aéreo que matou o líder político do Hamas Ismail Haniyeh na própria capital do Irã, assim como um ataque no Líbano que resultou na morte de Hassan Nasrallah, que chefiava o Hezbollah a mais de 3 décadas (KAYE, 2024). Vendo sua capacidade dissuasiva diminuir drasticamente, o Irã atacou Israel com uma barragem de mísseis em 1 de Outubro, incluindo seus avançados mísseis balísticos Shahab (ALFONSECA, 2024).

Apesar do ataque ter na maior parte sido efetivamente neutralizado pelos sistemas de defesa israelenses, abriu um novo e perigoso precedente para a região. Conforme Israel estuda possíveis alvos para retaliar, tendo o Irã perdido a credibilidade dissuasiva de duas peças chaves de sua tríade de segurança, sendo estas suas forças de mísseis convencionais e suas proxies, Teerã pode decidir avançar ainda mais seu programa nuclear como forma de prevenir a escalada em direção a uma guerra direta. No entanto, esta estratégia pode acabar por ter o efeito contrário, atraindo ataques diretos sobre instalações nucleares pelos EUA e Israel como forma de prevenir o nascimento de um Irã nuclearmente armado (VAEZ, 2024). Existe também a possibilidade de este caminho não ser suficientemente atrativo ao regime Iraniano, que já vem enfrentando cada vez maiores resistências internas, sendo as negociações da questão nuclear uma das principais vias disponíveis ao regime para alavancar alívio econômico e concessões por parte do Ocidente.

Alexander Wendt (1992), em seu famoso artigo “Anarchy is What States Make of It” defende teoricamente o construtivismo nas Relações Internacionais. A partir deste prisma, as interações entre os Estados no sistema internacional são condicionadas de maneira social, por meio de fatores culturais, ideológicos, cratológicos e até mesmo emocionais nas decisões dos policy makers. Da mesma forma, o teórico da era atômica Thomas Schelling (1966) postula que dinâmicas de alarmismo mútuo em face de uma corrida armamentista podem, como foi no caso da Primeira Guerra Mundial, levarem a guerra, Isso pela incapacidade dos agentes envolvidos de proporcionalizar suas respostas de maneira comensurável. Assim, a percepção de ameaça cria em si mesmo mais ameaças potenciais pela tentativa de sanar um determinado perigo.

Em conclusão, Israel e Irã caminham para uma crise desencadeada pela desconfiança mútua. A possibilidade de um aumento de ataques usando mísseis balísticos dentro do território Israelense, e a cada vez maior assertividade de Israel em atacar alvos até mesmo na própria capital Iraniana, cria uma dinâmica volátil que facilita a eclosão de uma guerra acidental pela falta do cálculo de risco. Mais uma vez levando em consideração o precedente histórico, a necessidade de demonstrar força bélica acaba por enfraquecer a própria capacidade dos Estados de solucionar seus dilemas de segurança.

REFERÊNCIAS

ABKARZADEH, Sharam. Proxy Relations: Iran and Hezbollah. In: ABKARZADEH, Sharam (ed.). ROUTLEDGE HANDBOOK OF INTERNATIONAL RELATIONS IN THE MIDDLE EAST. London and New York: Routledge, 2019. cap. 23, p. 321-329.AL

FONSECA, Kiara. A TIMELINE OF THE INTENSIFYING ISRAEL-HEZBOLLAH-IRAN CONFLICT. ABC News, 2024. Disponível em: https://abcnews.go.com/International/timeline-intensifying-israel-hezbollah-iran-conflict/story?id=114392969

FRIEDMAN, Thomas. FROM BEIRUT TO JERUSALEM. New York: Farrar Straus Giroux, 1989.KAYE, Dalia. WHERE WILL ISRAEL’S MULTIFRONT WAR END?. Foreign Affairs, 2024. Disponível em: https://www.foreignaffairs.com/israel/where-will-israels-multifront-war-end

PINKAS, Alon. ISRAEL HAS NO FOREIGN POLICY, ONLY A PRIME MINISTER WILLING TO SET THE REGION ABLAZE. Haaretz, 2024. Disponível em: https://www.haaretz.com/israel-news/2024-08-05/ty-article/.premium/israel-has-no-foreign-policy-only-a-prime-minister-willing-to-set-the-region-ablaze/00000191-2258-d917-a7d5-ff7de7950000

SCHELLING, Thomas. ARMS AND INFLUENCE. Yale: Yale University Press, 1966.VAEZ, Ali. IRAN’S YEAR OF LIVING DANGEROULSY. Foreign Affairs, 2024. Disponível em: https://www.foreignaffairs.com/middle-east/iran-year-living-dangerously-tehran-strategy-ali-vaez

WENDT, Alexander. ANARCHY IS WHAT STATES MAKE OF IT: The Social Construction of Power Politics. MIT Press: International Organization, Boston, v. 46, p. 391-425, Primavera 1992.