Keity Oliveira e Lara Lima (acadêmicas do 8º semestre de RI da UNAMA)

A linguagem é o maior tesouro que um povo pode ter. Cada língua representa um universo simbólico que, através de seu conjunto de palavras, articula os sentidos da vida, baseados na cosmogonia de um povo. Nesse sentido, a linguagem permite compreender e interpretar realidades, articular e organizar percepções. No entanto, das sete mil línguas faladas no mundo, pelo menos a metade delas podem não existir no futuro, uma vez que gerações mais novas não estão aprendendo.

Diante disso, o grande patrimônio linguístico do Brasil encontra-se sob ameaça de desaparecer, em grande parte, no decorrer desse século. Com efeito, o país é o terceiro com maior quantidade de línguas indígenas ameaçadas, segundo o Atlas Mundial das Línguas, elaborado pela UNESCO – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Barros, 2022).

Nos últimos 500 anos, estima-se que já foram extintas quase 80% das línguas indígenas faladas no continente antes da chegada dos europeus, fato que se dá por diferentes fatores como a incorporação de outras línguas majoritárias, a falta de transmissão às futuras gerações e questões de pressões políticas e sociais.

O Brasil é um país que se caracteriza por sua diversidade sociocultural e linguística dentre os países da América do Sul, sendo assim, uma nação multilíngue. No início da colonização, o número de línguas originárias era de aproximadamente 1.175 línguas indígenas (Rodrigues, 1993). No entanto, houve uma redução drástica, por extinção, de 85% ou mais, na diversidade linguística do Brasil, a qual corresponde, quase diretamente, à redução dos próprios povos indígenas.

Atualmente, de acordo com Galucio et al (2018), existe um número de 150 línguas indígenas brasileiras, sendo essa redução um processo preocupante, violento e ainda presente. Conforme Austin & Sallabank (2011), as línguas ameaçadas estão apresentando características de mudanças nos seus perfis, no qual muitas delas são apenas faladas por pessoas mais velhas e os jovens tipicamente estão apresentando um processo de mudança lingüística que influencia de forma negativa o fortalecimento desses idiomas, fatores que se combinados, podem levar à extinção das línguas faladas por indígenas.

A história da Amazônia, desde a chegada dos primeiros europeus à região até os dias atuais, tem sido de perdas e danos e nela, “a Amazônia tem sido, e isso paradoxalmente, vítima daquilo que ela tem de mais especial – sua magia, sua exuberância e sua riqueza” (LOUREIRO, 2002, p. 107). Com a chegada dos portugueses aqui, eles se depararam com a existência dos povos nativos com suas línguas, costumes e culturas. Conforme Seki (2000), o primeiro contato ocorreu com povos Tupique que ocupavam, na época, toda parte da costa brasileira e durante os anos, o número de línguas indígenas foi drasticamente reduzido.

No processo de colonização, a língua Tupinambá, por ser a mais falada ao longo da costa atlântica, foi incorporada por grande parte dos colonos e missionários, sendo ensinada aos indígenas nas missões e reconhecida como Língua Geral ou Nheengatu (Povos Indígenas no Brasil, [s.d]). Da mesma forma que o Tupi influenciou o português falado no Brasil, o contato entre povos fez com que suas línguas estivessem em constante modificação, através do multilinguismo (várias línguas).

Em meio a essa diversidade, apenas 25 povos têm mais de cinco mil falantes de línguas indígenas: Apurinã, Ashaninka, Baniwa, Baré, Chiquitano, Guajajara, Guarani (Nandeva, Kaiowá, Mbya), Galibi do Oiapoque, Ingarikó, Huni Kuin, Kubeo, Kulina, Kaingang, Mebêngôkre, Macuxi, Munduruku, Sateré Mawé, Taurepang, Terena, Ticuna, Timbira, Tukano, Wapichana, Xavante, Yanomami e Ye’kwana (Povos Indígenas no Brasil, [s.d]).

Nos dias atuais, ainda não se sabe o número exato de línguas indígenas faladas no Brasil, devido às dificuldades inerentes de acesso às comunidades indígenas existentes ou por questões de inteligibilidade mútua, ou seja, quando falantes de duas variedades lingüísticas podem compreender um ao outro, fazendo com que a variedade seja considerada mutuamente compreensível (Toledo e Miranda, 2021).

De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE (2010), a população indígena é de aproximadamente 897 mil pessoas, compondo 305 etnias e conforme o Instituto, são faladas cerca de 274 línguas, por aproximadamente 37,4% do total de indígenas. No entanto, esses dados são refutados por pesquisadores que alegam que nesse censo não houve um critério adequado para definir as diferenças de dialetos, classificação de línguas, línguas isoladas, etc. A divergência se dá pelo fato de que uma língua não é definida somente por critérios lingüísticos, mas também, por critérios identitários.

O reconhecimento das línguas indígenas como patrimônio cultural imaterial envolve um contexto de natureza complexa, do ponto de vista das políticas públicas. Conforme o atual sistema jurídico brasileiro de proteção de bens culturais, os bens imateriais são as formas de expressão – o que inclui as línguas, os modos de criar, fazer e viver, criações científicas, artísticas e tecnológicas, incluindo lugares em que essas manifestações ocorrem (Sesc, 2015).

A Constituição Brasileira, para além de reconhecer as formas de expressões culturais como patrimônio imaterial, foi insuficiente em relação à proteção da diversidade lingüística. Diferentemente, por exemplo, das constituições do México, que já no seu art. 2º garante aos indígenas o direito de preservar e enriquecer suas próprias línguas, e do Paraguai que considera o país como bilíngüe, reconhecendo o guarani como língua oficial (art. 140). Em ambos os casos, sem determinar como obrigatório o ensino do castelhano.

No Brasil, a despeito da Lei 11.645/2008 que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional para incluir na matriz curricular oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”, a implementação de políticas públicas educacionais para os povos indígenas se arrasta há décadas, com esforços isolados para garantir respeito à diversidade cultural e étnica nas escolas indígenas e não indígenas (Museu das Culturas Indígenas, [s.d]).

Em consonância, o desaparecimento de uma língua é uma perda para o patrimônio intelectual e cultural da humanidade. Galucio et al (2018), explica que as línguas indígenas, no passado, desapareceram sem qualquer registro e várias outras línguas faladas atualmente correm o perigo de um destino semelhante.

Inicialmente, a perda lingüística podia acontecer por inúmeros fatores, principalmente com o desaparecimento físico dos falantes, em decorrência de epidemias, extermínio direto, escravização, redução de territórios e destruição das condições de sobrevivência e aculturação forçada (Seki, 2000). Posteriormente, a extinção de línguas indígenas se centrou após as políticas centralizadoras portuguesas e depois brasileiras, pois mesmo após a Independência do Brasil, a sobrevivência de outras línguas dentro do território brasileiro, continuou sendo ameaçada.

D’Angelis (2002) explica que fatores como o viés político e econômico também implicam atualmente na perda lingüística. O primeiro ponto se dá através do abandono da língua materna, por diferentes motivos como questões políticas, pela pressão da escola, pela pressão das religiões estrangeiras, etc. O segundo ponto, que se correlaciona com o poder cultural e militar, define bem o status de cada língua, no qual, a língua portuguesa no Brasil, possui muito mais poder econômico, sobretudo, ao oferecer condições de renda para muitas comunidades, acesso a bens e serviços e mais poder militar, diferente das línguas indígenas que não tem sua devida importância.

Portanto, a preservação das línguas indígenas é essencial, pois elas representam a identidade e a riqueza cultural de seus povos. A língua é um pilar fundamental da identidade de uma comunidade, e é crucial que sejam implementadas mais políticas públicas voltadas para a preservação dessas línguas.

Diante da perspectiva exposta, indica-se o filme “Línguas da Floresta” (2024), dirigido por Juliana de Carvalho e Vicente Ferraz. A longa retrata questões relacionadas ao apagamento, documentação e preservação das línguas dos povos tradicionais brasileiros. O filme está disponível para ser assistido na plataforma de streaming, CineBrasil TV.

<https://tv/br/programas/linguas-da-floresta-2024>

Recomendamos também a leitura do livro “Línguas brasileiras: Para o conhecimento das línguas indígenas”, (1986), de Rodrigues, Aryon Dall’Igna. A obra oferece uma visão sistemática das línguas indígenas no Brasil, explorando seu conhecimento acumulado e as relações entre elas, contribuindo assim para uma compreensão mais ampla e aprofundada da diversidade linguística do país. O livro está disponível para ser adquirido na Biblioteca Digital Curt Nimuendajú.

<http://etnolinguistica.wdfiles.com/local–files/biblio%3Arodrigues-1986-linguas/Rodrigues_1986_LinguasBrasileiras.pdf>

Por fim, destaca-se o projeto do Laboratório de Línguas Indígenas da UFMG, que visa o estudo científico das línguas indígenas brasileiras. Suas atividades incluem a formulação de textos de literatura oral, a produção de gramáticas descritivas e artigos científicos, contribuindo, assim, para a preservação, documentação e revitalização dessas línguas.

Site institucional: <http://www.letras.ufmg.br/lali/projeto.html>

REFERÊNCIAS

AUSTIN, Peter; SALLABANK, Julia. Language endangerment. Cambridge University Press, New York, 2011, 581 p.

BARROS, Maria Fernanda. Estudo de línguas indígenas ajuda a preservar a cultura dos povos originários. Jornal da USP. Publicado em: 05 de dezembro de 2022. Disponível em: < https://jornal.usp.br/universidade/estudo-de-linguas-indigenas-ajuda-a-preservar-a-cultura-dos-povos-originarios/ > Acesso em: 28 de outubro de 2024.

D’ANGELIS, Wilmar da Rocha. Kaingáng: questões de língua e identidade. (1996). Liames: Línguas Indígenas Americanas,v.2,Campinas: IEL-Unicamp, p. 105-128, 2002.

GALUCIO,  Ana  Vilacy;  MOORE,  Denny;  VOORT,  van  der  Hien.  O  patrimônio  linguístico do  Brasil:  novas  perspectivas  e  abordagens  no  planejamento  e  gestão  de  uma  política  da diversidade  linguística. Revista  patrimônio  histórico  e  artístico  nacional,  IPHAN,  n.  38, 2018, p.195-218.

IBGE – Censo 2010. 2010. Disponível em: < https://censo2010.ibge.gov.br/noticias-censo?busca=1&id=3&idnoticia=2194&t=censo-2010-poblacao-indigena-896-9-mil-tem-305-etnias-fala-274&view=noticia > Acesso em: 28 de outubro de 2024.

LOUREIRO, Violeta Refkalefsky. Amazônia: uma história de perdas e danos, um futuro a (re)construir. Estudos Avançados, 16 (45), 107-121. São Paulo, 2002. Disponível em: < https://www.revistas.usp.br/eav/article/view/9872 > Aceso em: 28 de outubro de 2024.

MUSEU DAS CULTURAS INDÍGENAS. A língua como patrimônio cultural. Boletim de Acervos. [s.d]. Disponível em: < https://museudasculturasindigenas.org.br/boletim-acervo/a-lingua-como-patrimonio-cultural/ > Acesso em: 28 de outubro de 2024.

POVOS INDÍGENAS NO BRASIL. Línguas. [s.d]. Disponível em: < https://pib.socioambiental.org/pt/L%C3%ADnguas > Acesso em: 28 de outubro de 2024.

RODRIGUES, Aryon. Línguas indígenas: 500 anos de descobertas e perdas. D.E.L.T.A., v. 9, n.1, p. 83-103, 1993.

SESC – Bens culturais e direitos humanos. Org. por Inês Virgínia Prado Soares e Sandra Cureau. São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2015.

SEKI,  Lucy.  Línguas  Indígenas  do  Brasil  no  Limiar  do  século  XXI. Impulso,  Piracicaba,  v. 12, n. 27, p. 157-170, 2000.

TOLEDO, B. F.; MIRANDA, C. C. . Por que documentar e descrever línguas? A importância desses estudos para revitalização e fortalecimento de línguas indígenas brasileiras. Articulando e Construindo Saberes, Goiânia, v. 6, 2021. DOI: 10.5216/racs.v6.67284. Disponível em: < https://revistas.ufg.br/racs/article/view/67284 > Acesso em: 28 de outubro de 2024.