Profa. Dra. Lygia Sousa – Doutora em Comunicação e Semiótica – PUC-SP; Docente do Curso de Relações Internacionais e de Comunicação da UNAMA e Professora Pedagoga do Centro de Mídias da Educação Paraense – SEDUC-Pa.

Em 1999, a Guerra Fria havia terminado e, assim, encerrava o embate bipolar entre Estados Unidos e União Soviética. No cinema, isso trouxe mudanças significativas. Durante a Guerra Fria, Hollywood tinha antagonistas bem definidos, como os nazistas e os soviéticos, que personificavam ameaças ideológicas e militares. Com o fim desse período, o foco migrou para filmes de catástrofe, como Independence Day (1996) e Armageddon (1998), que exploravam desastres naturais ou ameaças extraterrestres como reflexo de um mundo que ainda buscava novos inimigos. Ninguém conseguia prever ou representar o verdadeiro perigo do século XXI.

No entanto, o Bug do Milênio, ou Y2K, começou a assombrar o final do século XX, tornando-se o centro da preocupação global relacionada à transição dos dígitos com final 99 para 00 que poderia causar falhas exponenciais em sistemas integrados de bancos, companhias aéreas, sistemas elétricos e em dados de grandes corporações estatais e privadas, demonstrando a inicial dependência da tecnologia informática proporcionada pelo advento da cibercultura.

Foi nesse cenário de transição e de expectativas, que as irmãs Wachowski inovaram ao apresentar um antagonista que não era um indivíduo ou uma nação, mas um sistema. Em Matrix, o perigo não tem rosto; ele é onipresente e difuso, simbolizado pela Matrix e operacionalizado pelos agentes. Essa visão antecipou os novos conflitos do século XXI, que não se limitariam mais ao embate físico, mas se desdobrariam no campo ideológico e virtual.

Antes mesmo do 11 de setembro de 2001, o filme já apontava que as lutas modernas ocorreriam em um território mais abstrato. Como destaca Trivinho (2001), as batalhas deixaram de ser travadas exclusivamente no espaço físico da polis e passaram a acontecer também no plano simbólico e informacional — um prenúncio do papel das fake news em tempos recentes.

No aspecto social-filosófico, Matrix oferece uma reflexão sobre a concepção de realidade, dialogando com o conceito de hiper-realidade, de Baudrillard (1981). O filme nos apresenta a Matrix como um universo virtual perfeitamente harmônico, mas artificial, criado para manipular e controlar os humanos, enquanto a realidade “verdadeira”, pálida e decadente, mostra-se oposta à ilusão confortável do sistema. Esse contraste reflete a ideia de Baudrillard de que o real é suplantado por representações, criando um mundo onde o simulacro (a Matrix) não apenas distorce o real, mas o substitui completamente. A cena do déjà vu, quando Neo percebe a alteração no sistema ao ver um gato repetido, é uma das mais icônicas na representação dessa tensão entre real e simulado.

Outra questão importante, é o controle que o sistema tem sobre os corpos e mentes, silenciando e os transformando em seres produtivos e submissos, ideais para o controle (Foucault, 1975), como pode ser visto na cena em que Thomas Anderson é levado a prestar depoimento e os agentes não permitem que ele fale, ao “apagarem” a sua boca, ou ainda na cena que mostram os campos de cultivo de corpos adormecidos.

Além disso, a obra explora o autoconhecimento e a liberdade de escolha. A cena em que Morfeu apresenta as pílulas vermelha e azul a Neo é emblemática: aceitar a pílula vermelha significa abandonar o conforto da ilusão para enfrentar a verdade, ainda que ela seja difícil e dolorosa. Esse momento remete diretamente à inscrição “Conhece-te a ti mesmo” na entrada do Oráculo, uma referência à filosofia socrática. Nesse ponto, o filme questiona a possibilidade de autocompreensão em um mundo onde as experiências humanas são entendidas a partir das percepções e, por isso, podem ser facilmente manipuladas pelo sistema.

A narrativa de Matrix também é rica em arquétipos. Neo, inicialmente apresentado como Thomas Anderson, está adormecido sobre sua mesa de trabalho, simbolizando seu estado de alienação. Ele é “despertado” por Morfeu, cujo nome remete ao deus dos sonhos, em um chamado à ação. Trinity, que simboliza a união entre fé e amor, desempenha um papel fundamental ao acreditar no potencial de Neo. A jornada de autoconhecimento culmina quando Neo aceita ser o Escolhido, ressuscitando em um momento de transformação definitiva. Esse ciclo de morte e renascimento reflete seu compromisso em levar seu propósito até o fim, como se vê ao longo da trilogia.

A influência cultural de Matrix é imensa. A estética dos personagens, com roupas de couro preto e óculos escuros, tornou-se um ícone da moda do final dos anos 1990. Termos como “tomar a pílula vermelha” foram apropriados e, muitas vezes, reinterpretados fora do contexto original. Os efeitos visuais, como o bullet time, revolucionaram o cinema, com cenas memoráveis como a esquiva de balas de Neo e os saltos acrobáticos de Trinity. A abordagem multimídia do universo de Matrix foi outra inovação marcante.

Além dos filmes, o universo expandiu-se para outras mídias, como o anime Animatrix (2003), que explorou as origens do conflito entre humanos e máquinas, e o jogo Enter the Matrix (2003), que interligava diretamente sua narrativa com os acontecimentos das sequências Matrix Reloaded e Matrix Revolutions (2003). Essa estratégia, conhecida como narrativa transmídia, permitiu uma experiência integrada e expansiva para os fãs, consolidando o universo da franquia como um marco cultural.

O quarto filme, Matrix Resurrections (2021), trouxe uma nova camada de crítica, desta vez voltada para a própria indústria cinematográfica e para a cultura pop que absorveu o filme original de 1999. Em um mundo pós-pandemia, a narrativa subverteu expectativas ao destacar o protagonismo feminino e as fragilidades de Neo, que precisa se ressignificar e encarar suas fragilidades pessoais ao perceber que a Matrix continua a se renovar e a escravizar, mostrando o fracasso das utopias e o impacto da tecnologia em nossas vidas, mantendo-se fiel ao espírito inovador da franquia.

Passados 25 anos, Matrix segue sendo uma referência, antecipando debates sobre a relação entre humanidade e tecnologia. Uma obra atemporal, que continua a inspirar e provocar reflexões profundas sobre o futuro da sociedade. Vida longa a este clássico que a nos desafiar a “despertar”.