Por Felipe Ranieri, acadêmico do 2º semestre de Relações Internacionais na Unama.

No dia 26 de novembro de 2024, o gabinete de segurança do primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, aprovou um acordo de cessar-fogo  com o Hezbollah; esse acordo foi intermediado pelos Estados Unidos e pela França, com duração estipulada em dois meses (a ser validado 24 horas após seu firmamento), e, pelas falas de Netanyahu, condicionado às noções israelenses de necessidade em atacar o Líbano e romper com o tratado em prol de seu “combate ao terrorismo”: “Se o Hezbollah violar o acordo e tentar se rearmar, atacaremos. Se tentar reconstruir a infraestrutura terrorista perto da fronteira, atacaremos. Se disparar um foguete, se cavar um túnel, se trouxer um caminhão com mísseis, atacaremos.” (Israel, 2024).

A priori, um acordo envolvendo forças centrais da geopolítica atual, com diferenças categóricas entre si, pode parecer uma esperança diante de olhares otimistas, ao mesmo tempo em que há pouca sustentação prática para aqueles que reconhecem tamanhas diferenças. Para o grupo de resistência islâmica, Israel representa um inimigo colonial, enquanto para Israel, o Hezbollah significa uma organização terrorista a ser combatida; em um momento de acirramento das questões de identidade no oriente médio, como a resistência dialogaria como o colonizador (sob os termos do grupo islâmico)? Ou, então, como uma nação democrática dialogaria com sua ameaça terrorista (sob os termos sionistas)? 

Há de ser notado que o intuito desse texto não é se debruçar sobre essas diferenças conceituais acerca das percepções de cada ator envolvido no conflito, embora sejam contextualizadas, mas responder a que grau o tratado de cessar-fogo firmado no dia 26 de novembro diz respeito a uma aproximação do fim do conflito. Indo além, para exemplificar o quanto a pergunta é basilar no mar de complexidade do assunto, sequer propõe-se a falar em termos de conceituação mais “volátil” como: “paz” ou “violência”. Nesse sentido, o que será exposto são questões militares a partir de um evento diplomático entre atores notavelmente antagônicos  não só no tocante às suas posições e interesses dentro do Sistema Internacional, mas também nas suas convicções e bases teóricas.

Por dizer em antagonismo, já no primeiro dia de vigência do cessar-fogo surgem denúncias de ambos os lados acerca de descumprimentos do tratado, com o exército libanês (responsável pelo monitoramento do conflito no sul do Líbano) indicando inúmeras ofensivas por parte de Israel, enquanto o Hezbollah corresponde reivindicando a autoria de ataques nos dias seguintes (UOL, 2024). No entanto, ainda que haja uma sinalização inicial por parte do exército libanês, Israel não assume a posição de iniciativa no ferimento ao cessar-fogo, alegando resposta a violações por parte da organização de resistência xiita no que diz respeito a um dos pontos mais questionáveis do tratado: a permissividade de ataque no caso de Israel interpretar que ainda há permanência do Hezbollah no sul libanês (Opera, 2024). Desde que o acordo entrou em vigor, não houve nenhum dia em que não surgissem alegações de ferimento às suas resoluções por ambos os lados (Opera, 2024), esse fato permite uma resposta muito clara à pergunta inicial deste artigo: Fim do conflito? Evidentemente que não, mas cabe ainda analisar as condições políticas que tornaram essa trégua uma posição desejável para Israel mesmo sob seus alicerces de violência contínua.

De acordo com a Secretária de Assuntos Institucionais da Federação Árabe Palestina do Brasil, Mayara Nafe, a promulgação de um tratado de cessação de hostilidades tem caráter ambíguo. De primeiro momento, nota-se uma consequência dos sinais de cansaço do regime sionista que há mais de 420 dias está em conflito na frente de Gaza e há mais de 2 meses na frente libanesa, gerando um custo militar e econômico elevado; nessa visão, o acordo seria fundamental para minimizar gastos e recuperar forças para continuar seus ataques (Nafe, 2024). No entanto, outra visão possível é a de que o cessar-fogo visa criar condições políticas para materialização de novos ataques, algo que é confirmado já nas resoluções do documento com a promulgação de marcos que não condizem com possibilidades reais, como o dever do Líbano em desarmar todas as forças atuantes (Silva, 2024).

A partir do momento em que as narrativas se perdem e Israel emerge à opinião pública cada vez mais enquanto operador de uma máquina da morte, compensa taticamente a ideia de um cessar-fogo para revigorar suas motivações de ofensiva. Isso é, se a acusação de violação do cessar-fogo é mútua, Israel utiliza-se de sua versão para voltar a escalonar o conflito sob a lógica de que a paz foi tentada, mas descumprida pelos terroristas. 

Essa perspectiva de analisar o acontecimento parece fazer ainda mais sentido diante da recente fala do Ministro da Defesa israelense, Israel Katz, ao afirmar que o regime sionista não fará distinção entre Líbano e Hezbollah caso o acordo falhe (Katz, 2024). Observando dessa maneira, confirma-se o caráter contraditório do tratado de cessar-fogo assinado no dia 26 de novembro; afinal, ainda que não haja confirmação de que o intuito real do Estado de Israel foi descumprí-lo propositalmente para justificar novas agressões, é evidente que a continuidade do conflito e o fortalecimento de sua legitimidade para o campo sionista se dão enquanto resultado dessa trégua formal. 

Ao observar tal fenômeno sob a ótica dos paradigmas do campo das Relações Internacionais, pode ser notado o desejo pela paz do paradigma liberal, mas, diante da realidade exposta, a alcunha de idealista para essa corrente de pensamento se confirma; ao lidar com o realismo, absorve-se a factualidade da inevitabilidade da guerra em decorrência dos interesses distintos entre os atores internacionais, mas é a partir do neomarxismo que consolidar-se-á uma análise mais completa em decorrência das questões coloniais e de identidade que rondam o conflito, em conexão com os fatores econômicos. Nesse sentido, o conceito de imperialismo de Lenin (2011) enquanto processo de formação de monopólios que promove a exportação de capital, gerando uma competição entre as potências capitalistas é muito útil, afinal, as ações israelenses estão sempre submetidas aos interesses imperialistas dos EUA, que enxergam no financiamento do projeto sionista, uma ponte estratégica para consolidar-se no oriente médio. Com essa percepção da política internacional, estabelece-se o financiamento externo recebido pelo Estado de Israel como peça central não somente na característica do imperialismo enquanto dominação de povos, mas também em seu outro caráter: o de disputar com outras potências essa capacidade de dominar (Losurdo, 2020). Se os realistas expõem a guerra como acontecimento inevitável, Lenin irá explicar o porquê dessa inevitabilidade no contexto do capitalismo monopolista global, em que a estrutura de dominação imperialista gera necessariamente a guerra por ser mediada por Estados com burguesias limitadas aos seus aspectos nacionais e, portanto, potencialmente conflituantes(Bugiato, 2017).

No entanto, na análise de “Imperialismo: fase superior do capitalismo”, Lenin (2011) foca suas considerações na guerra entre Estados burgueses e, ainda que haja uma disputa entre Estados por trás de todo o conflito entre Hezbollah e Israel, não tem como negar a relação de resistência da identidade muçulmana reivindicada pela organização libanesa. Ao aprofundar-se nos aspectos de identidade, outros teóricos do neomarxismo passam a ser fundamentais, como Frantz Fanon; para ele, o processo de violência colonial é norteado pela prática de desumanização do colonizado para legitimação de seu sofrimento (Fanon, 2008), compreendendo a cultura como aspecto necessariamente humano, nota-se também a indissociabilidade entre categorias culturais como raça e religiosidade para continuidade do conflito no oriente médio. A fim de unir as teorias expostas do neomarxismo (e seus focos entre dominação econômica e de identidade) com a fragilidade do cessar-fogo analisado, a lógica é a seguinte: para Israel manter sua ofensiva, utiliza-se da desumanização do povo árabe ao empregar sua tática colonial em consonância com a subordinação à lógica imperialista global. Para o Hezbollah, Fanon embasa uma justificativa severa para a utilização da violência e legitimidade do conflito: “o colonialismo não é uma máquina de pensar, não é um corpo dotado de razão. É a violência em estado puro, e só se curvará diante de uma violência maior” (Fanon, 2005). Sem ilusões, portanto, o tratado entra em desacordo com a necessidade do Hezbollah em reivindicar seu direito à violência como arma anticolonial, do mesmo modo em que o cessar-fogo não parece estar longe de ser apenas mais uma tática sionista de continuar seu desejo de apagamento étnico, como maneira de tomar posse das terras e sem deixar nada à improvisação, como diria o próprio idealizador do Estado Judeu, Theodor Herzl (Losurdo, 2020).

REFERÊNCIAS:

BUGIATO, Caio. Kautsky e Lenin: imperialismo, paz e guerra nas relações internacionais. Revista Novos Rumos, Marília, SP, v. 54, n. 2, 2017. DOI: 10.36311/0102-5864.2017.v54n2.05.p24. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/novosrumos/article/view/8533.. Acesso em: 4 dez. 2024.

Fanon, Frantz. Os Condenados da Terra. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2005. FERREIRA, Manuel.

Fanon, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.

Israel não fará mais distinção entre Líbano e Hezbollah se cessar-fogo falhar, diz ministro. G1, 3 dez. 2024. Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2024/12/03/israel-nao-fara-mais-distincao-entre-libano-e-hezbollah-se-cessar-fogo-falhar-diz-ministro.ghtml. Acesso em: 3 dez. 2024.

Losurdo, Domenico. Colonialismo e luta anticolonial. São Paulo: Boitempo, 2020.

Nafe, Mayara. Cessar-Fogo Líbano x Israel: Netanyahu e Hezbollah Aceitam Trégua – Programa Outubro. 2024. YouTube. Disponível em: https://youtu.be/3Z9fONDwIyM. Acesso em: 2 dez. 2024.

No 1º dia de cessar-fogo, Israel e Hezbollah trocam acusações de violação. UOL, 28 nov. 2024. Disponível em: https://cultura.uol.com.br/noticias/69428_no-1-dia-de-cessar-fogo-israel-e-hezbollah-trocam-acusacoes-de-violacao.html. Acesso em: 2 dez. 2024.

O Imperialismo: etapa superior do capitalismo. Campinas: FE/UNICAMP, 2011. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/lenin/1916/imperialismo/imperialismo.pdf. Acesso em 3 dez. 2024.

Silva, Vanessa. Cessar-Fogo Líbano x Israel: Netanyahu e Hezbollah Aceitam Trégua – Programa Outubro. 2024. YouTube. Disponível em: https://youtu.be/3Z9fONDwIyM. Acesso em: 2 dez. 2024.

Um dia após acordo, Exército libanês acusa Israel de violar cessar-fogo ‘várias vezes’. Opera Mundi, 28 nov. 2024. Disponível em: https://operamundi.uol.com.br/guerra-israel-x-libano/um-dia-pos-acordo-libano-acusa-israel/. Acesso em: 3 dez. 2024.