Emí Vilas Boas – internacionalista

A crise energética desencadeada pela redução do fluxo de gás da Rússia para a Europa é um marco no cenário geopolítico contemporâneo. Este evento reflete não apenas os desdobramentos da guerra na Ucrânia, sanções ocidentais, e as profundas interdependências econômica, assim como as tensões geopolíticas mas também os padrões estruturais que moldam o sistema internacional. Para compreender essa dinâmica, é útil examinar o caso por meio de duas das principais teorias das Relações Internacionais: o realismo e o liberalismo.

Por décadas, a Europa manteve uma relação energética com a Rússia, importando cerca de 40% do gás natural consumido na União Europeia, principalmente via gasodutos como o Nord Stream 1, segundo o Conselho Europeu (2024). Apesar de vista como um risco estratégico, essa dependência foi tolerada pela confiança na estabilidade econômica e na interdependência. A invasão da Ucrânia pela Rússia em fevereiro de 2022 colocou em risco a segurança energética da Europa, transformando o gás natural em arma geopolítica. A crise revelou a vulnerabilidade europeia, com infraestrutura insuficiente para armazenar gás ou importar GNL, levando a uma corrida para construir terminais de regaseificação e diversificar fornecedores como Catar, EUA e Noruega.

A perspectiva realista, representada por autores como Robert Gilpin, sustenta que os Estados agem em função de seus interesses nacionais, priorizando a segurança e a acumulação de poder. Em War and Change in World Politics (1981), Gilpin argumenta que a competição por recursos escassos, como terras férteis, trabalho escravo e petróleo, tem sido historicamente um fator determinante de conflitos. A teoria realista interpreta que o fornecimento de gás é parte de uma estratégia russa de fortalecimento geopolítico frente ao Ocidente, entendendo que no primeiro momento, ele explanava uma grande vulnerabilidade da União Europeia.

De acordo com Gilpin (1981), a “lei dos retornos decrescentes” incentiva os Estados a expandirem seu controle econômico ou territorial para superar limitações internas ao crescimento. A Rússia, ao utilizar o gás como ferramenta de pressão, para exercer seu poder econômico para obter vantagens estratégicas. Sob essa ótica, a ação russa não é apenas um reflexo do conflito militar em curso, mas também uma tentativa de maximizar seu poder relativo no sistema internacional, utilizando um recurso valioso como arma política e econômica.

Em contraste, o liberalismo enfatiza a interdependência e a possibilidade de cooperação entre os Estados, mesmo em situações de disputa. Autores como Robert Keohane e Joseph Nye, em Power and Interdependence (2001), destacam que a interdependência não é isenta de conflitos. Ela pode ser uma fonte de poder, utilizada pelos Estados para influenciar o comportamento de outros atores. Keohane e Nye introduzem os conceitos de sensibilidade e vulnerabilidade, fundamentais para analisar o impacto da redução do fluxo de gás.

A sensibilidade da Europa é evidente na alta dependência de países como Alemanha, Itália e Hungria do gás russo, o que resultou em impactos econômicos imediatos, como inflação e aumento no custo da energia, o que foi sentido em níveis históricos em toda a Europa. Já a vulnerabilidade refere-se às dificuldades de médio e longo prazo para encontrar alternativas viáveis, como a diversificação das fontes de energia ou o desenvolvimento de infraestrutura para importação de gás natural liquefeito (GNL).

Para os liberais, a crise expõe os limites da cooperação quando os interesses nacionais divergem. Apesar das iniciativas europeias de união, como os esforços para criar um mercado energético integrado, a resposta à crise revelou tensões internas, com países priorizando seus interesses domésticos.

A crise do gás exemplifica as dinâmicas propostas por ambas as teorias. Do ponto de vista realista, a redução do fluxo é uma estratégia calculada pela Rússia para maximizar sua influência em um momento de confronto. Já o liberalismo mostra como a interdependência molda as interações entre os Estados, tornando-os sensíveis e vulneráveis às decisões alheias.

A principal diferença entre as abordagens está na ênfase atribuída às consequências do conflito: enquanto o realismo interpreta a crise como um movimento de poder unidirecional, o liberalismo sugere que a interdependência cria incentivos para soluções cooperativas, mesmo diante de tensões. No caso europeu, a busca por alternativas ao gás russo reflete tanto o esforço de minimizar a vulnerabilidade quanto a necessidade de preservar a estabilidade econômica e política no continente. A complexidade do sistema internacional, como evidenciado pela crise energética, demonstra que o equilíbrio entre competição e cooperação continua sendo um desafio para os líderes globais, e a resolução da crise dependerá de como os Estados envolvidos lidarão com as pressões impostas pela realidade geopolítica e econômica.

Em um dos primeiros movimentos de 2025, a Ucrânia decidiu não renovar o acordo de transporte de gás com a Rússia, interrompendo o abastecimento para países como Áustria, Hungria e Eslováquia, o que marca mais mudanças nas dinâmicas energéticas da Europa. A União Europeia já havia reduzido sua dependência do gás russo de mais de 40% em 2021 para cerca de 8% em 2023, entretanto fim do acordo simboliza uma ruptura histórica em uma relação energética que influenciou as políticas europeias por décadas, podendo trazer mais incertezas na economia do bloco, e no desenvolvimento direto do conflito em Rússia e Ucrânia.

Bibliografia:

GILPIN, Robert (1981). War and Change in World Politics. Cambridge and New York: Cambridge University Press.

KEOHANE, Robert O. (1978). After Hegemony: Cooperation and Discord in World Political Economy. Princeton (NJ): Princeton University Press.

KEOHANE, Robert O e NYE, Joseph S. (2001). Power and Interdependence, third edition. New York: Longman.

Conselho da União Europeia (2023). Comunicado de imprensa 25 de fevereiro de 2023

“Um ano de invasão em larga escala e guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia: UE adota 10.º pacote de sanções económicas e individuais” https://www.consilium.europa.eu/pt/press/press-releases/2023/02/25/one-yearof-russia-s-full-scale-invasion-and-war-of-aggression-against-ukraine-eu-adopts-its-10th-package-ofeconomic-and-individual-sanctions/

De onde vem o gás da UE?. Conselho da União Europeia,2024. https://www.consilium.europa.eu/pt/infographics/eu-gas-supply/