
Gabriele Nascimento (acadêmica do 3º semestre de RI da UNAMA)
Keity Oliveira (Internacionalista formada pela UNAMA)
Lara Lima (acadêmica do 1º semestre de RI da UNAMA)
A Amazônia é lar de vastas culturas, mas também é palco de resistência e luta, sobretudo para os povos originários e para as mulheres indígenas que habitam a floresta. As mulheres indígenas desempenham papéis cruciais para em suas comunidades como líderes espirituais, guardiões de saberes tradicionais e conselheiras.
Entretanto, suas histórias foram brutalmente distorcidas, silenciadas e marginalizadas ao longo da história da região, o que possibilitou o perseguição, execução e repreensão de diversas lideranças e cosmovisões indígenas.
No século XV, com a onda crescente do antropocentrismo (homem como centro do universo), o teocentrismo (Deus como o centro do universo) foi entrando em decadência, o que não agradou os líderes religiosos que mantinham na Europa, a compreensão distorcida de que a religião devia ser expressão e busca de poder terreno.
Tal distanciamento entre a religião católica e os fiéis também significou que a arte, a ciência e a filosofia não giravam mais em torno da igreja e dos fundamentos efetivados por ela. Com a instabilidade proclamada, a Igreja Católica deu início ao processo que visava levá-la novamente ao poder.
Sendo assim, foram instaurados então, os Tribunais de Inquisição (Cambraia, 2021), formados pelas judicaturas da Igreja Católica, que perseguiam, julgavam e puniam pessoas acusadas de se desviar das normas de conduta da época.
Além disso, no final do século XV, os cercamentos, prática que consistia em cercar e transformar terras comuns em propriedade privada, começaram a surgir na Europa, principalmente na Inglaterra. Conforme Silvia Federici em seu livro “Mulheres e a caça às bruxas”, lançado em 2019, esse fenômeno, juntamente com os processos de Inquisição, foram responsáveis por fazer as primeiras vítimas dessa época: as mulheres.
Os Tribunais de Inquisição defendiam vigorosamente que aqueles que não seguissem os dogmas impostos pela Igreja Católica fossem punidos de forma violenta (Cambraia, 2021). O objetivo principal era tanto fazer exemplo das vítimas à população que ousasse desrespeitar as normas, quanto “se livrar” das chamadas bruxas.
Myriam Bahia Lopes, autora, historiadora e professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), discorre que a Inquisição foi um processo que surgiu com os novos moldes do capitalismo (Cambraia, 2021), especificamente no período em que havia grande investimentos de países como Espanha, Portugal e Inglaterra na expansão e influência sobre novos territórios, em função do Imperialismo e Colonialismo.
Na Amazônia, a presença da Inquisição se estendeu por mais de dois séculos (Santos, 2016), tendo alcançado praticamente todo o território, desde as regiões mais densamente povoadas, que se tornaram as mais atingidas, até os limites do sertão, onde, mesmo fragilizado, o catolicismo se fazia sentir.
Durante o período, figuras como pajés, parteiras e as majés foram perseguidas pela Inquisição. A palavra “Majé” é a expressão feminina de “Pajé” e reforça o poder feminino do dom de cura e conhecimento das ervas medicinais, da anatomia humana. Para além de serem mulheres, são parteiras, puxadeiras, ouvintes e conselheiras, conhecedoras da sabedoria ancestral indígena da Amazônia, conforme Gomes (2024).
Com a invasão europeia, doenças trazidas pelos colonizadores afetaram grande parte das comunidades locais, incluindo mulheres grávidas. Em diferentes culturas indígenas, o processo de morte e os ritos funerários tinham simbolismos muito diferentes dos europeus (Souza, 2024). Em casos de morte materna, por exemplo, o corpo da mãe e do bebê eram frequentemente enterrados juntos ou incinerados, conforme os costumes tradicionais, já que não havia separação entre eles na passagem para o mundo espiritual.
Esse ritual foi distorcido pelos inquisidores, que acusaram as parteiras de práticas macabras, como comer bebês, pois o corpo da criança não era encontrado em separado.
A perseguição aos pajés e majés foi ainda mais brutal. Considerados “satanistas” ou “adoradores de demônios” esses líderes espirituais e curadores eram fundamentais para as comunidades indígenas, pois eram os responsáveis por transmitir conhecimentos sobre cura, medicina e espiritualidade.
Com a repressão, os colonizadores e missionários se empenharam em substituir a figura da majé, que significa “Mãe da Cura”, pela figura masculina do pajé, o “Pai da Cura” (Souza, 2024). Enquanto ambos, pajés e majés, tinham o papel de se comunicar com os espíritos, além de orientar de forma espiritual e curar, o termo “majé” foi silenciado, dando lugar a uma figura masculina que facilitava o controle e a dominação das lideranças indígenas pelos colonizadores.
Esse apagamento cultural foi um processo longo e profundo, o que trouxe como consequência, o desaparecimento da memória do termo majé em muitas comunidades.
As mulheres curadoras passaram a adotar o título de pajé, mesmo em um contexto de resistência e luta pela recuperação de suas tradições. Isso se relaciona com o fato de que muitas das práticas de cura entre os povos indígenas continuam sendo lideradas por mulheres, o que reforça o papel delas na preservação e transmissão dos conhecimentos ancestrais.
Com o fortalecimento dos movimentos de retomada indígena, o termo majé tem ganhado força novamente em comunidades com longas tradições de cura, no qual as mulheres são as principais responsáveis por esses saberes. Um exemplo recente é o das Arapecangas da Aldeia Papagaio, do povo Tupinambá, no Baixo Tapajós, no Pará (Souza, 2024). Elas têm resgatado o legado de suas ancestrais, honrando a linhagem das mulheres curandeiras e a importância das majés na preservação das práticas de cura e espiritualidade.
A luta das mulheres para conquistar espaços na sociedade humana foi estruturada num arcabouço onde o patriarcado predominou e liderou sobre todos os âmbitos da vida, desde estruturas familiares a estruturas de poder político.
Dessa forma, a luta feminina, em suas diferentes nuances, perdura até hoje para ocupar espaços onde a equidade de gênero reflita numa sociedade equilibrada e a mulher seja vista com respeito e igualdade diante de seus conhecimentos, pelos quais as mulheres sempre foram perseguidas, principalmente sobre os seus saberes de ervas e curas.
Nesse sentido, esse movimento desafia séculos de imposição colonial e patriarcal, evidenciando a resiliência das culturas indígenas na luta pela valorização e preservação de suas tradições.
Por fim, a história das majés é profundamente ligada com a luta contra as violências estruturais de gênero, raça e classe. Elas são exemplos de figuras de resistência, pois desafiam as narrativas coloniais e reivindicam seu lugar como protagonistas na construção de um futuro sustentável para seus povos e para a Amazônia.
Diante da temática exposta, recomenda-se o documentário “As Hiper Mulheres” (2011), dirigido por Takumã Kuikuro, Carlos Fausto e Leonardo Sette. A longa destaca o protagonismo das mulheres indígenas do território Kuikuro, localizado no Xingu, Mato Grosso, evidenciando o papel central das mulheres na organização social e na realização de rituais e festividades. A narrativa é conduzida pelo Jamunikumalu, o maior ritual de canto das mulheres Kuikuro, onde uma “índia velha” entoa seus cânticos pela última vez antes de sua morte. Disponível para ser assistido no Youtube, através do link a seguir:
<https://www.adorocinema.com/filmes/filme-202632>
Recomenda-se também a leitura do livreto “Majés do Baixo Tapajós e o Dom de Cura” (2024), de Patrícia Tapuia e Moara Tupinambá, que retrata de forma sensível e poderosa a luta das mulheres majés para conquistar espaço em uma sociedade marcada pelo patriarcado, destacando suas práticas de cura e sua resistência como formas de protagonismo e preservação cultural. O livro está disponível para ser adquirido no drive do projeto.
Por fim, recomenda-se conhecer o projeto Generi, uma organização sem fins lucrativos dedicada a discussões sobre gênero e feminismos no contexto das Relações Internacionais. Embora tenha como foco principal as R.I., o grupo mantém uma abordagem interdisciplinar e está aberto à participação de pessoas de diversas áreas e universidades, promovendo um espaço inclusivo para o diálogo e o compartilhamento de saberes.
Instagram: <https://www.instagram.com/grupogeneri?igsh=eHJ0OWduN3FoaTZr>
X: <https://x.com/GrupoGeneri?t=oihdglMWRuFDX_zGX2IirA&s=09>
REFERÊNCIAS
CAMBRAIA, Stela. A caça às bruxas e o feminismo. Blog Colab. Publicado em: 05 de maio de 2021. Disponível em: https://blogfca.pucminas.br/colab/caca-as-bruxas-feminismo/ > Acesso em: 30 de dezembro de 2024.
GOMES, Conce. Majés do Baixo Tapajós e o dom de cura. Tapajós de Fato. Publicado em: 19 de novembro de 2024. Disponível em: < https://www.tapajosdefato.com.br/noticia/1405/majes-do-baixo-tapajos-e-o-dom-de-cura > Acesso em: 30 de dezembro de 2024.
SANTOS, Lidiane Vicentina dos. “Terra Inficionada”: as práticas mágicoreligiosas indígenas e a Inquisição na Amazônia portuguesa setecentista. Dissertação (Mestrado – Mestrado em História) – Universidade Federal de São João Del-Rei, 2016. 149 p. Disponível em: < https://www.ufsj.edu.br/portal2-repositorio/File/pghis/DissertacaoLidianeVicentinaSantos.pdf > Acesso em: 30 de dezembro de 2024.
SOUZA, Danielle. Caça às bruxas, inquisição e o apagamento das Majés na Amazônia. Coluna BT MAIS. Publicado em: 31 de outubro de 2024. Disponível em: < https://btmais.com.br/caca-as-bruxas-inquisicao-das-majes-na-amazonia/#google_vignette > Acesso em: 30 de dezembro de 2024.
