
Railson Silva – acadêmico do 8º semestre de Relações Internacionais da UNAMA.
A República Democrática do Congo (RDC), palco de uma das crises humanitárias mais prolongadas do século XXI, enfrenta uma nova escalada de violência desde 2022, reacendendo debates sobre as dinâmicas de conflitos civis em Estados frágeis. Com mais de 120 grupos armados atuando em seu território e um histórico de intervenções regionais (BMZ, 2023), a guerra congolesa transcende fronteiras, envolvendo interesses geopolíticos, exploração de recursos naturais e disputas étnicas.
A guerra civil no Congo remonta à desestruturação pós-colonial. Após a independência da Bélgica (1960), o país mergulhou em crises de governança, exacerbadas pela intervenção de potências estrangeiras durante a Guerra Fria (YOUNG, 1994). O regime de Mobutu Sese Seko (1965-1997), marcado por corrupção e centralização do poder, pavimentou o caminho para as guerras regionais de 1996-2003, que envolveram nove países africanos e resultaram em mais de 5 milhões de mortes (PRUNIER, 2009). Atualmente, a insurgência do grupo M23 (apoiado por Ruanda, segundo relatórios da ONU) e a disputa por minerais como cobalto e coltan mantêm o leste do país em colapso, deslocando mais de 6,4 milhões de pessoas (ACNUR, 2024).
Tendo em vista a teoria pós-colonial, ela desnaturaliza a ideia de “maldição dos recursos”, mostrando que a violência não deriva da abundância mineral, mas de como a estrutura do sistema global é a causa da exploração. O Congo detém 70% das reservas mundiais de cobalto (UNEP, 2022), mineral central para a transição energética ocidental. No entanto, sua extração é controlada por milícias e empresas estrangeiras que operam em conjunto com elites locais, reproduzindo a lógica do “extrativismo colonial” (QUIJANO, 2000).
Enquanto a União Europeia e os EUA promovem discursos de sustentabilidade, suas corporações compram minerais de zonas de conflito, financiando grupos como o M23, grupo rebelde da RDC, e perpetuando ciclos de violência. Esse duplo padrão expõe a racialização da economia global: corpos congoleses são invisibilizados para sustentar o consumo de sociedades do Norte Global (FANON, 1961).
Considerando tal contexto, a ideia de necropolítica, elaborada por Achille Mbembe (2003), mostra como o Congo e grupos internacionais lidam com a vida e a morte nas áreas onde há minerais. A existência de mais de 120 grupos armados não é bagunça, mas um jeito organizado: a violência dividida deixa que minerais sejam tirados com gastos baixos enquanto a comunidade mundial vê seu país como um lugar fora dos padrões onde matanças ficam comuns.
A Missão das Nações Unidas no Congo (MONUSCO), por exemplo, gasta milhões todos os anos em ações de paz, mas erra em confrontar as empresas ocidentais que ganham ͏com o conflito (NAÇÕES UNIDAS 2023). Essa ajuda só reafirma como a “paz” neoliberal prefere a segurança dos investimentos͏ em detrimento das pessoas.͏ ͏
Ademais, a retórica de “descolonização” promovida por organismos internacionais é desmascarada pela realidade congolesa. Programas de ajuste estrutural do FMI, por exemplo, forçaram o Estado a privatizar minas nos anos 1990, transferindo controle para multinacionais (HARVEY, 2005). Hoje, iniciativas como a Parceria Global para Minerais Sustentáveis (2022) repetem a mesma lógica, ao propor certificações éticas que ignoram demandas locais por soberania sobre recursos. Movimentos sociais congoleses, como LUCHA (Luta pela Mudança), exigem o fim da pilhagem e reparações históricas, mas são criminalizados ou silenciados — prova de que a ordem global pós-colonial ainda nega agência aos subalternos (SPIVAK, 1988).
Em resumo, a guerra civil no Congo não é um erro, mas um reflexo do sistema internacional depois do colonialismo. A ideia crítica mostra como o uso de recursos naturais, a violência racializada e a necropolítica mantêm o país em um ciclo de dependência e morte. Ajudas técnicas como missões de paz ou certificações éticas falham porque não desafiam as estruturas que fazem do Congo uma colônia informal do capitalismo verde. Enquanto o mundo não confrontarem seu próprio passado colonial, o Congo seguirá sangrando para alimentar o progresso alheio.
Referências:
ACNUR. Relatório sobre Deslocamento no Congo. 2023. Disponível em: https://www.acnur.org/br/emergencias/republica-democratica-do-congo-rdc.
FANON, Frantz. Os Condenados da Terra. 1961. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/fanon/1961/condenados/.
HARVEY, David. O Neoliberalismo: História e Implicações. 2005. Disponível em: https://www.uc.pt/feuc/citcoimbra/Harvey
MINISTÉRIO FEDERAL DE COOPERAÇÃO ECONÔMICA E DESENVOLVIMENTO (BMZ). Situação política: um legado político difícil. Disponível em: https://www.bmz.de/en/countries/democratic-republic-of-the-congo/political-situation-56152.
MBEMBE, Achille. Necropolitica. Public Culture, v. 15, n. 1, p. 11-40, 2003. Disponível em: https://www.procomum.org/wp-content/uploads/2019/04/necropolitica.pdf
PRUNIER, Gérard. Africa’s World War: Congo, the Rwandan Genocide, and the Making of a Continental Catastrophe. Oxford: Oxford University Press, 2009. Disponível em: https://global.oup.com/academic/product/africas-world-war-9780199754205.
QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do Poder, Eurocentrismo e América Latina. A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Buenos Aires: CLACSO, 2000. Disponível em: https://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/sur-sur/20100624103322/12_Quijano.pdf
SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Can the Subaltern Speak?. Marxism and the Interpretation of Culture. Urbana: University of Illinois Press, 1988. Disponível em: https://jan.ucc.nau.edu/~sj6/Spivak%20CanTheSubalternSpeak.pdf.
UNITED NATIONS. Report on the Illegal Exploitation of Natural Resources in the DRC. 2023.
YOUNG, Crawford. The African Colonial State in Comparative Perspective. New Haven: Yale University Press, 1994.
UNEP. Can the Democratic Republic of the Congo’s mineral resources provide a pathway to peace? 2022. Disponível em: https://www.unep.org/news-and-stories/story/can-democratic-republic-congos-mineral-resources-provide-pathway-peace
