Keity Oliveira (Internacionalista formada pela UNAMA)

A Inquisição, um dos períodos mais sombrios da história medieval, foi responsável pela perseguição e condenação de milhares de mulheres, principalmente acusadas de heresia, bruxaria e práticas consideradas contrárias à fé cristã. A figura da “bruxa”, construída ao longo dos séculos, se tornou um símbolo do mal, do desconhecido e da transgressão dos valores sociais e religiosos da época. A caça às bruxas, então, representou uma ferramenta de continuidade da manutenção do domínio masculino, reafirmando a subordinação da mulher à figura do patriarcado religioso e social.

A investigação do estudo de gênero no âmbito das Relações Internacionais teve destaque no final da década de 1980, no contexto do chamado “terceiro debate” das Relações Internacionais, entre os positivistas e os pós-positivistas (Monte, 2013), que foram os responsáveis pela ruptura com as formas de construção de conhecimento anteriores da área, que não possuíam interesse em incluir em suas análises, as variáveis relacionadas com os novos atores que impactam nos fenômenos internacionais.

Nesse viés, a pesquisadora Lauren B. Wilcox, professora adjunta e diretora do Centro de Estudos de Gênero da Universidade de Cambridge, é um dos principais destaques sobre estudos de segurança internacional dentro dos estudos de gênero das Relações Internacionais, buscando evidenciar temáticas como a violência política, subjetividade e o conceito de “corporificação” a partir de uma perspectiva feminista e queer.

No livro “Bodies of Violence: Theorizing embodied subjects in international relations” (2014), a autora salienta que o gênero, definido como um fenômeno social e cultural que determina as subjetividades e compõe as relações de poder, expõem os corpos a diferentes formas de violência. Para Wilcox, como as RI tradicional teoriza os corpos dos sujeitos como existindo fora da política, não consegue enxergar a violência como uma força criativa que molda os limites de como nos compreendemos como sujeitos políticos, bem como tem a capacidade de formar as fronteiras de corpos e comunidades políticas.

Diante disso, no século XV, com a onda crescente do antropocentrismo (homem como centro do universo), o teocentrismo (Deus como o centro do universo) foi entrando em decadência, o que não agradou os líderes religiosos que mantinham na Europa, a compreensão distorcida de que a religião devia ser expressão e busca de poder terreno. Sendo assim, foram instaurados então, os Tribunais de Inquisição (Cambraia, 2021), formados pelas judicaturas da Igreja Católica, que perseguiam, julgavam e puniam pessoas acusadas de se desviar das normas de conduta da época. O objetivo principal era tanto fazer exemplo das vítimas à população que ousasse desrespeitar as normas, quanto “se livrar” das chamadas bruxas.

As mulheres sempre carregaram um sentido de máxima importância na sociedade. Por serem capazes de engravidar, detém o poder de dar seguimento à vida na Terra (Cambraia, 2021). Além disso, desde os primórdios da humanidade, era papel das mulheres criar os filhos, transferindo saberes sobre como funciona a natureza, as estações do ano, o plantio e, consequentemente, começaram a aprender como funciona o corpo humano, como combater uma febre ou gripe, com o uso de plantas medicinais.

Esse conhecimento foi passado de geração a geração, de mãe para filha e, com isso, a mulher garantia seu valor na sociedade. No entanto, à medida que essas mulheres, as antigas enfermeiras, médicas, professoras, estudiosas de qualquer segmento, começaram a questionarem seu papel até então inferiorizado pelos homens, a Igreja Católica, dominada por ideias patriarcais, percebeu uma ameaça.

Conforme afirmam Eherenreich e English (1984), as bruxas não surgiram espontaneamente, mas foram fruto de uma campanha de terror realizada pela classe dominante. Poucas dessas mulheres realmente pertenciam à bruxaria, contudo, criou-se uma histeria generalizada na população, de forma que muitas das mulheres acusadas e condenadas a fogueiras, passavam a acreditar que eram mesmo bruxas e que possuíam um “pacto com o demônio”.

Ao se analisar o contexto da caça às bruxas com os estudos de Wilcox, é possível perceber que é por meio da violência que os corpos, sobretudo os femininos, passarão a ser vistos, reconhecidos. A Inquisição, como uma prática de violência política foi responsável pela fabricação da bruxa como uma figura de “outra”, que é vista como uma ameaça à ordem social e religiosa da época. Ainda nessa perspectiva, Federici (2017) observa que essas mulheres representam a existência de corpos que desafiavam e ameaçavam o poder soberano e que passaram a ser historicamente controlados pelo Estado.

Por não estarem associadas ao padrão normativo e irem contra os instrumentos de sujeição, esses corpos subversivos foram constantemente perseguidos pelas forças do Estado, em suas diferentes camadas (Mendes, 2021). Essa concepção fica evidente quando se entende o alcance de processos históricos como a colonização, a caça às bruxas, as novas formas de imperialismo, entre outros, têm sobre a produção de corpos capazes ou não de se revolucionarem contra regimes políticos e suas dinâmicas opressoras.

Portanto, a Inquisição se configurou como uma instância que vai além da repressão religiosa, sendo uma ferramenta estratégica de controle social, focada em assegurar o domínio sobre os corpos femininos e reafirmar as desigualdades de gênero presentes na sociedade medieval. A produção da imagem da bruxa é um exemplo claro de como os mecanismos de poder podem ser utilizados para silenciar, marginalizar e submeter mulheres que ousam desafiar a ordem estabelecida e como a construção dessa violência, conforme Wilcox (2014) é vista e reconhecida.

REFERÊNCIAS

CAMBRAIA, Stela. A caça às bruxas e o feminismo. Blog Colab. Publicado em: 05 de maio de 2021. Disponível em: < https://blogfca.pucminas.br/colab/caca-as-bruxas-feminismo/ > Acesso em: 09 de março de 2025.

EHRENREICH, Barbara & ENGLISH, Deirdre. Hexen, Hebammen und Krankenschwestern. 11. Auflage. München: Frauenoffensive, 1984.

FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: Mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Editora Elefante, 2017.

MENDES, Enndiel dos Santos. Gênero e corpo: repensando as relações internacionais. São Cristóvão, 2021. Monografia (graduação em Relações Internacionais) – Departamento de Relações Internacionais, Centro de Ciências Sociais Aplicadas, Universidade Federal de Sergipe, São Cristóvão, SE, 2021. Disponível em: < http://ri.ufs.br/jspui/handle/riufs/17436 > Acesso em: 09 de março de 2025.

MONTE, Isadora Xavier do. O debate e os debates: abordagens feministas para as relações internacionais. IN. Estudos Feministas, Florianópolis, 21, 2013. Disponível em: < https://www.jstor.org/stable/24328035?read-now=1&seq=1#metadata_info_tab_contents > Acesso em: 09 de março de 2025.

WILCOX, Lauren B. Bodies of violence: theorizing embodied subjects in international relations. New York: Oxford University Press, 252 pp. 2014.