
Maria Luiza Garcia Lira – acadêmica do 3º semestre de Relações Internacionais da UNAMA.
As primeiras guerras já registradas na história da humanidade como uma expressão da soberania de um Estado datam séculos antes de Cristo. Apesar de uma transformação significativa no modelo estatal ao longo da história, a maximização do poder e a decisão sobre as vidas que importam – e, portanto, quais corpos são considerados “matáveis” – ainda permanece como um aparelho político do Estado. Essa lógica, compreendida pelo conceito de Necropolítica por Achille Mbembe, reforça a manutenção da gestão de quem vive e quem morre, sendo analisada pelo autor camaronês, especialmente, em um contexto no qual o estado de exceção é normatizado. Nesse sentido, a Necropolítica pode ser compreendida como uma nova face ou radicalização da biopolítica.
Para compreender as bases do conceito da Necropolítica, torna-se necessário resgatar a Teoria Pós-Moderna das Relações Internacionais. Caracterizada por uma visão crítica das teorias tradicionais, sobretudo em relação à incompletude das teorias positivistas, que abordam a racionalidade e o pragmatismo em suas análises, a Teoria Pós-Moderna sistematiza as ideias por meio de uma perspectiva crítica e analisa como as verdades universais são, na verdade, construídas socialmente. Assim, o objetivo principal é descontruir e questionar as narrativas sociais sustentadas por trás de discursos teóricos estabelecidos (SARFATI, p.240, 2006).
Desse modo, Michel Foucault, importante pensador cuja contribuição é significativa para os fundamentos da teoria pós-moderna nas Relações Internacionais, argumenta sobre como esses conceitos pré-estabelecidos são definidos por agentes de um poder que foi estruturado socialmente e como as verdades variam de acordo com o poder que domina cada momento da história (FOUCAULT, p.10, 1996). Assim, pode-se entender como a ênfase no discurso e na linguagem – pautada por alguns teóricos pré-estruturalistas – é utilizada como forma de construir uma verdade, sendo esta, uma ferramenta que vai além da descrição da realidade, mas também moldadora dessa realidade de acordo com determinado objetivo.
Segundo Begnis et. al (2011), seria necessária uma conscientização coletiva para tratar essas questões que abrangem não uma sociedade de um determinado espaço, mas como uma questão societal global que existe como parte de uma construção humana. A lógica do discurso, portanto, é o que legitima as retóricas políticas que possuem em sua estruturação, um caráter necropolítico, como a narrativa de Adolf Hitler na Alemanha nazista e de Benjamin Netanyahu na ocupação do território da Palestina; essas práticas de deterioração da vida humana, pautadas por decisões estruturalistas do Estado são, portanto, explicadas por Achille Mbembe como o exercício moderno do poder pela via de destruição
Ainda no pensamento de Michel Foucault, a biopolítica seria uma forma de exercício de poder que se volta à vida biológica da sociedade, abordando temáticas como natalidade, mortalidade, sexualidade; a partir do século XVIII, o poder estruturado passa a ter a vida como seu objeto de administração, sendo alvo de intervenções e estratégias políticas para sua regulamentação (FOUCAULT, 1977). A partir dessa lógica, o filósofo camaronês Achille Mbembe desenvolve sua análise a partir do biopoder foucaultiano, mas não em uma perspectiva da gestão da vida, e sim em uma política de morte e abandono de grupos sociais, isto é, a necropolítica. Sob esse viés, Mbembe analisa como as estruturas coloniais de um Estado soberano submetem determinados grupos sociais marginalizados a uma condição precária ou de morte, nas quais os corpos não importam e a soberania se exerce pelo poder de destruição, de tal forma que o exercício de poder moderno se estrutura não só pelo controle da vida, mas também pelo controle das vidas que morrem (MBEMBE, 2016).
Nesse sentido, tem-se como exemplo do exercício de poder – que tem como caráter a desvalorização da vida humana – o conflito entre a República Democrática do Congo (RDC) e Ruanda. A persistência desses conflitos é pautada em dinâmicas históricas e estruturais que tem o seu início em 1885, com a Conferência de Berlim e a divisão territorial e fronteiriça do continente africano pelos países europeus que desconsideraram as dinâmicas étnicas e culturais daquele espaço, resultando, em 1994, no genocídio – consolidado com apoio belga – entre tutsis e hutus em Ruanda. Com os refugiados hutus ocupando o leste do Congo para fugir de uma política de morte pautada pelo colonialismo, Ruanda justificou a intervenção militar no território congolês sob a lógica do discurso de segurança e fomentou uma subordinação neocolonial, especialmente econômica, na República Democrática do Congo, perpetuando o exercício da necropolítica no conflito (PEREIRA, AGUILAR, 2014).
Sob a ótica da necropolítica de Mbembe, o exemplo do conflito entre Ruanda e RDC tem o poder soberano moderno exercendo sua autoridade na produção e gestão da morte no contexto da guerra. Nesse sentido, o filósofo camaronês aponta como a mudança do biopoder deixa de se voltar para a gestão da vida para apontar aqueles que devem morrer, racionalizando uma política que normaliza a desvalorização da vida humana, especialmente de populações marginalizadas, racializadas e colonizadas; além disso, revela também como esses estados africanos, apesar de terem uma independência formal dos estados europeus, ainda operam com formas necropolíticas herdadas do poder colonial. Em síntese, a necropolítica não apenas denuncia a face mais brutal do poder moderno, mas também revela como a história colonial continua a operar na lógica estatal contemporânea, perpetuando hierarquias de vidas que valem e vidas que podem ser descartadas.
Referências:
BEGNIS, Heron Sérgio Moreira, AZEVEDO, Gabriella, STEIN, Maurício et al. Pós-Modernismo e as relações internacionais: uma análise sob a ótica da complexidade. In: 3° Encontro Nacional Abri 2011, 3., 2011, São Paulo. ABRI – USP, Disponível em: http://www.proceedings.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=MSC0000000122011000200027&lng=en&nrm=abn. Acesso em: 15 de abril de 2025.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. 1. ed. São Paulo: Edições Loyola, 1996.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. 1. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1977.
MBEMBE, Achille. Necropolítica. Revistas UFRJ, n.32, 2016. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/ae/article/view/8993. Acesso em: 13 de abril de 2025.
PEREIRA, Letícia; AGUILAR, Sérgio L. C.. Congo – a atual dinâmica do conflito e a rendição do m23. Série Conflitos Internacionais N. 02, abril de 2014. Unesp de Marília. Disponível em: https://www.google.com/url?sa=t&source=web&rct=j&opi=89978449&url=https://www.marilia.unesp.br/Home/Extensao/observatoriodeconflitosinternacionais/n02-congo—a-atual——dinamica-do-conflito-e-a-rendicao-d-o-m23.pdf&ved=2ahUKEwjW7tfvituMAxXtJrkGHQp4LJw4ChAWegQIFhAB&usg=AOvVaw3YMY0S4sOkIRy9xgHmhcin. Acesso em: 15 de abril de 2025.
SARFATI, Gilberto. Teorias de Relações Internacionais. Editora Saraiva. Brasil, 2006.
