
Sofia Dias Santos, acadêmica do 1°semestre de Relações Internacionais, da Unama.
Entre os diversos símbolos criados ou apropriados pela República, destaca-se a figura de Tiradentes, reconhecido pelo público como o maior símbolo nacional. Como observa Paulo Miceli (1994), Tiradentes é compreendido como um verdadeiro herói da nação. Embora sua figura não tenha sido originada no contexto republicano, sua imagem foi apropriada pelos vencedores da mudança de regime. A República, em busca de uma figura emblemática que suplantasse o carisma do imperador D. Pedro I — símbolo da Monarquia —, viu em Tiradentes a possibilidade de consolidar uma nova mitologia nacional. Nas palavras de Carvalho (1990, p. 55), “a luta em torno do mito de origem da República mostrou a dificuldade de construir um herói para o novo regime”.
Joaquim José da Silva Xavier, mais conhecido como Tiradentes, nasceu em Minas Gerais em 1746 e destacou-se como figura central da Inconfidência Mineira. Ao longo de sua trajetória, exerceu múltiplas ocupações — entre elas mascate, tropeiro, minerador, comerciante e dentista —, sendo esta última a origem de seu apelido. Seu envolvimento com os ideais iluministas europeus foi determinante para sua adesão ao movimento inconfidente, a primeira articulação de caráter emancipatório no Brasil Colônia (CARVALHO, 1990). Em 1788, uniu-se a membros da elite mineira com o objetivo de eliminar o governador e instaurar um regime republicano autônomo (MARCÍLIO, 2001).
A insurreição foi motivada principalmente pela iminente cobrança da chamada “derrama”, uma forma de tributação excessiva imposta pela Coroa Portuguesa. Contudo, em 1789, o plano foi denunciado por Joaquim Silvério dos Reis, resultando na prisão dos participantes. Tiradentes, por sua posição mais ativa e por assumir sozinho a responsabilidade pelo movimento durante o julgamento, foi o único a receber a pena capital. Após três anos de encarceramento, foi executado por enforcamento em 21 de abril de 1792. Seu corpo foi esquartejado, com os membros distribuídos ao longo do caminho entre o Rio de Janeiro e Minas Gerais, enquanto sua cabeça foi exposta em praça pública. A execução de Tiradentes teve caráter exemplar, sendo utilizada como advertência a qualquer tentativa futura de insurreição contra o regime colonial (MICELI, 1994; SCHWARCZ, 2019).
A construção da imagem de Tiradentes como herói nacional, apropriada pelo regime republicano para substituir os símbolos monárquicos e consolidar uma nova mitologia política, encontra respaldo crítico na análise de Kenneth Maxwell (1999), cuja obra destaca a Inconfidência Mineira não apenas como uma insurreição isolada, mas como expressão das tensões estruturais do colonialismo português no final do século XVIII.
A condenação exemplar de Tiradentes, como destaca Schwarz (2019), revela-se, à luz de Maxwell, uma estratégia deliberada da monarquia portuguesa para reafirmar sua autoridade frente à desarticulação de seu projeto imperial. Assim, a apropriação simbólica de Tiradentes pela República dialoga diretamente com os elementos estruturais e conjunturais analisados por Maxwell, revelando a complexa transição entre colônia e nação e entre o herói histórico e o herói mitológico.
A independência do Brasil, proclamada oficialmente em 1822, não foi apenas um rompimento jurídico-político com a Coroa portuguesa, mas também um processo profundo de construção simbólica e discursiva, essencial à constituição de uma identidade nacional autônoma.
Neste sentido, a Teoria Pós-colonial, ao se debruçar sobre os legados simbólicos, culturais e políticos do colonialismo, permite compreender como as nações recém-independentes constroem suas identidades a partir da reformulação de narrativas e símbolos históricos. No caso brasileiro, a figura de Tiradentes pode ser analisada como um produto emblemático desse processo. Sua imagem — martirizada, sacrificada e santificada — foi mobilizada pelo projeto republicano para preencher o vácuo simbólico deixado pela Monarquia, promovendo, ao mesmo tempo, uma ruptura com os valores coloniais e uma reconstrução da memória nacional.
Edward Said (1993) argumenta que o discurso histórico é um campo de disputa, em que diferentes narrativas competem pelo controle simbólico do passado. Ao resgatar Tiradentes como herói nacional, o Brasil pós-independência (e especialmente pós-monarquia) buscou legitimar a ruptura com o colonialismo através de um mito fundador que simbolizasse o espírito de resistência nacional. Essa operação de ressignificação histórica se alinha ao que Homi Bhabha (1998) define como a ambivalência das identidades pós-coloniais: enquanto ainda marcadas pelas estruturas coloniais, as nações recém-independentes constroem novos sentidos e símbolos para se afirmar como sujeitos autônomos.
No cenário contemporâneo, a persistência da imagem de Tiradentes como herói nacional revela como as narrativas históricas construídas no passado continuam a operar na formação das identidades políticas e culturais do presente. A mobilização simbólica de figuras como Tiradentes ainda desempenha papel central em discursos oficiais, comemorações cívicas e na legitimação de projetos políticos diversos, muitas vezes de forma acrítica ou descontextualizada. Portanto, se reforça a importância de uma leitura histórica crítica, capaz de problematizar os usos do passado no presente, especialmente em um país marcado por profundas desigualdades sociais e por uma herança colonial ainda visível nas estruturas de poder.
Nesse sentido, compreender a ressignificação de Tiradentes — e de outros símbolos nacionais — é também refletir sobre como o Brasil atual negocia sua memória, reconstrói suas referências identitárias e encara os desafios de consolidar uma democracia plural, inclusiva e verdadeiramente autônoma.
REFERÊNCIAS
CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
MICELI, Paulo. Tiradentes: um herói simbólico. São Paulo: Ática, 1994.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
MAXWELL, Kenneth. A devassa da devassa: a Inconfidência Mineira: Brasil e Portugal, 1750-1808. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999.
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998.
