
Thaís Carvalho, acadêmica do 7° semestre de Relações Internacionais
Com o fim da Guerra da Coreia, em 1953, o estado sul-coreano enfrentou um contexto socioeconômico e político instável, onde a população se encontrava em extrema fragilidade e pobreza. Em decorrência do conflito, houve um número exacerbado de crianças órfãs ou abandonadas, seja por causa da guerra, da pobreza, por serem filhos de mães solteiras ou até mesmo frutos de relacionamentos de coreanas com soldados estrangeiros. Assim, de acordo com Kim (2014), o estado vislumbrou, através da estratégia biopolítica de adoção internacional, uma oportunidade prática e eficiente de lidar com tal problema populacional, estabelecendo agências privadas para atuarem no processo de adoção para países do Ocidente como Estados Unidos, Dinamarca, Noruega e França.
Entre os anos de 1950 até o final dos anos de 1990, estima-se que a Coreia do Sul ‘exportou’ mais de 200 mil crianças coreanas através do processo de adoção transnacional (Choe, 2023). Ao longo do tempo, o programa foi ‘vendido’, pelo governo, como a alternativa mais viável e de baixo custo para fortalecer as políticas de bem-estar infantil no país. Porém, têm surgido inúmeras denúncias de irregularidades nestes processos, o que desencadeou, em 2025, no maior escândalo de exportação de bebês sul-coreanos, em que foto divulgada pela Comissão da Verdade mostra menores de idades enrolados em cobertores e presos em assentos de um avião, cujo título é “Crianças enviadas ao exterior como bagagem” (G1, 2025).
No dia 26 de março de 2025, a Comissão da Verdade e Reconciliação da Coreia do Sul divulgou as conclusões de uma investigação realizada ao longo de 2 anos – e com previsão de conclusão para o fim de maio-, onde analisou mais de 100 casos de um total de 367 denúncias apresentadas por cidadãos que foram enviados ao exterior, entre 1964 e 1999, por meio do processo de adoção transnacional. De acordo com a declaração oficial, a Comissão relatou que, dos 100 primeiros casos analisados, foram identificadas 56 ‘vítimas’ de negligências praticadas pelo estado, sendo considerado uma clara violação dos direitos humanos fundamentais garantidos pela Constituição sul-coreana, revisada em 1987 (Yeung; Seo, 2025).
Segundo Yeung e Seo (2025), o processo de adoção internacional de crianças sul-coreanas era administrado diretamente por agências privadas de adoção, o que proporcionou uma menor interação, supervisão e omissão do governo nos trâmites de adoção de inúmeros menores, tornando este setor um mercado extremamente lucrativo. Isto posto, durante as investigações da Comissão da Verdade, encontrou-se evidências de que os processos de adoção apresentavam diversas irregularidades, tais como registros forjados – a citar identidades e certidões de nascimento-, triagem inadequada dos pais adotivos, casos de falta de consentimento parental adequado e até mesmo coerção de mães solteiras, logo após o parto, para doarem seus filhos.
Na conclusão da investigação, a Comissão recomendou ao estado sul-coreano que fosse feito um pedido oficial de desculpas aos cidadãos que foram vítimas da ‘exportação’ em massa, e aos seus familiares. Além disso, evidenciou a necessidade do estado de conduzir uma pesquisa ainda mais abrangente para analisar a situação da cidadania dos adotados e apresentar soluções eficazes aos cidadãos que foram vítimas dos registros falsificados, além do compromisso das agências de adoção em restaurar os direitos das vítimas (G1, 2025).
Deste modo, as ações desencadeadas pela estratégia biopolítica planejada pelo estado sul-coreano na década de 1950, além das omissões praticadas no decorrer deste período, refletem como as decisões tomadas pelos países e policymakers exercem influências na vida e no corpo dos cidadãos, tornando-os meros instrumentos para atender os interesses do Estado.
Dito isto, pode-se analisar o caso da ‘exportação’ de bebês sul-coreanos sob a ótica dos estudos Pós-Modernos das Relações Internacionais, vertente esta que problematiza os discursos dominantes e busca desconstruir conceitos positivistas como soberania, poder e segurança, demonstrando como estes são produzidos socialmente e permeados por relações de poder que silenciam os mais vulneráveis (Begnis et al., 2011).
Assim, o conceito de biopolítica desenvolvido pelo teórico pós-moderno Michel Foucault, em sua obra “Nascimento da Biopolítica” (2008), torna-se fundamental para a análise das dinâmicas de controle e gestão populacional existentes no programa de adoção transnacional. Segundo Foucault, a biopolítica constitui uma estratégia de poder que visa administrar a vida das populações por meio de técnicas de regulação, controle e otimização dos corpos e das vidas, articulando interesses políticos, econômicos e sociais. Assim, as atividades exercidas pelo estado sul-coreano e as agências privadas de adoção exemplificam o controle exercido sobre os corpos dessas crianças, famílias e mães solteiras que foram coagidas a doarem seus filhos, transformando tais cidadãos em meros recursos para garantir os interesses econômicos e políticos do estado (Kim, 2014).
Por fim, tal caso explicita um triste período do país do leste asiático, que marca as vidas de milhares de adotados sul-coreanos que foram enviados, sob as mais diversas calamitosas situações, ao exterior, em prol de uma política perversa que escolhe os cidadãos que devem permanecer na sua nação.
REFERÊNCIAS
BEGNIS, H.; AZEVEDO, G.; STEIN, M. et al. Pós-Modernismo e as relações internacionais: uma análise sob a ótica da complexidade. In: 3° ENCONTRO NACIONAL ABRI 2011, 3., 2011, São Paulo. Proceedings online. Associação Brasileira de Relações Internacionais, Instituto de Relações Internacionais – USP. Disponível em: <http://www.proceedings.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=MSC0000000122011000200027&lng=en&nrm=abn> . Acesso em: 16 abr. 2025.
CHOE, S. H. World’s Largest ‘Baby Exporter’ Confronts Its Painful Past. The New York Times. 2023. Disponível em: https://www.nytimes.com/2023/09/17/world/asia/south-korea-adoption.html . Acesso em: 15 abr. 2025
FOUCAULT, M. Nascimento da Biopolítica. Curso dado no College de France 1978-1979. São Paulo: Livraria Martins Fontes, 2008.
G1. Coreia do Sul admite ter ‘exportado’ crianças para adoção como se fossem ‘bagagem’ por décadas. 2025. Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2025/03/27/coreia-do-sul-admite-ter-exportado-criancas-para-adocao-como-se-fossem-bagagem-por-decadas.ghtml . Acesso em: 15 abr. 2025.
KIM, H. The biopolitics of transnational adoption in South Korea: Preemption and the governance of single birthmothers. Body & Society, v. 21, n. 1, p. 58-89, 2015.
YEUNG, J; SEO, Y. This country was the world’s ‘baby exporter.’ But its government violated human rights to meet demand, probe finds. CNN. 2025. Disponível em: https://edition.cnn.com/2025/03/26/asia/south-korea-overseas-adoption-investigation-intl-hnk/index.html . Acesso em: 15 abr. 2025.
