
Keity Oliveira e Pedro Henrique de Aviz (Internacionalistas formados pela UNAMA)
Stefany Campolungo (Acadêmica do 8° semestre)
Ficha técnica:
Ano: 2021
Direção: Pascal Charrue e Arnaud Delord
Gênero: Animação, Drama, Aventura
Distribuição: Netflix
País de origem: Estados Unidos da América
As adaptações dos mais variados jogos digitais para outras plataformas de mídia vêm se tornando algo recorrente atualmente. Esse método é utilizado para atrair cada vez mais público ao jogo e mantê-lo popular entre os jogadores através de história e dos personagens envolvidos dentro da trama. Dentre essas adaptações, Arcane se consagra como uma das obras baseadas em games mais bem sucedidas dentro desse meio. A produção é muito bem avaliada tanto pela crítica quanto pelo público e tem uma base sólida de fãs ao redor do mundo, conforme explica Da Silva (2023).
Arcane é uma adaptação do jogo League of Legends, produzido pela Riot Games, e aborda a história das irmãs Vi e Jinx. A série é focada em duas regiões, a rica cidade de Piltover, conhecida como a cidade do progresso, e a subferia de Zaun, um distrito periférico e sucateado por Piltover. Desse modo, a narrativa é influenciada pelas dinâmicas de desigualdade e injustiça entre as cidades, que acabam por moldar todos os acontecimentos dramáticos subsequentes na série (Dias; Mandaji, 2024).
Com base nisso, a série apresenta diversas abordagens sociais ao decorrer da história, em que a população de Zaun tenta resistir às investidas cada vez mais agressivas de Piltover através de manifestações e grupos de resistência. A partir dessa premissa, a Teoria Construtivista das Relações Internacionais, a qual reconhece segundo Gabriela (2010), a cultura e as identidades como parte da construção social e internacional, pode ser utilizada para analisar a dinâmica da série e entender de que forma a obra faz paralelos com o campo de estudo das RI.
A Teoria Construtivista possui dois principais autores, sendo eles Nicholas Onuf e Alexander Wendt. Onuf (2012) afirma que o sistema internacional advém de construções sociais, o que torna essas dinâmicas heterônomas, ou seja, passíveis de transformações. Enquanto Wendt (1999), o qual será o foco deste artigo, discorre sobre o impacto das ideias e das identidades na política internacional e na construção das dinâmicas entre diferentes Estados, o autor argumenta também que estes fatores definem as decisões das nações dentro do sistema internacional ao invés da distribuição de poder, como defendido nas teorias positivistas.
Diante disso, Arcane apresenta uma realidade construída socialmente, onde as cidades-estados de Piltover e Zaun têm identidades e percepções distintas. A construção social da realidade é um dos principais conceitos presentes no viés Construtivista de Wendt, que dialoga na obra “Social Theory of International Politics” (1999) sobre as concepções construtivistas acerca dos conceitos de identidades e interesses, bem como sua relação e a maneira como vão impactar o caráter do sistema.
Nesse sentido, conforme Wendt (1999), a anarquia é o que os Estados fazem dela, ou seja, não é a estrutura em si que determina o comportamento dos atores, mas sim suas interações e significados compartilhados. Em Arcane, as cidades de Piltover e Zaun não são apenas entidades geográficas ou políticas distintas: suas identidades são moldadas por uma longa história de exclusão, exploração e resistência.
Piltover se apresenta como uma sociedade de progresso, ordem e civilização – valores que se refletem em sua autopercepção como guardiã da ciência (com a tecnologia Hextech) e do progresso e Zaun, por outro lado, constrói sua identidade a partir da marginalização, no qual sua imagem se forma como um povo resistente, que valoriza a liberdade, mas que também carrega o trauma da exclusão e exploração. Essas diferenças contextuais contribuem para a construção das percepções e identidades das personagens principais, assim como também influencia os acontecimentos políticos que giram em torno de poder e controle, interesses e conflitos, alinhado com a noção de Wendt de que identidades se formam na interação com o “Outro”.
Além disso, as personagens Jinx e Vi possuem identidades complexas que são influenciadas pelas suas experiências e contextos sociais, o que mostra o processo de socialização e mudança dos atores através da interação, conforme discutido por Wendt (1999). A personagem Vi torna-se a representação de uma possibilidade de reconciliação, pois sua trajetória a faz transitar entre as duas cidades, questionando suas identidades fixas, enquanto Jinx encarna o fracasso da socialização e da reconciliação, um produto da violência, da manipulação e da ausência de normas comuns entre Piltover e Zaun.
Através desses elementos, é possível compreender que a série Arcane, da Netflix, vai além da adaptação de um jogo digital, se posicionando como uma obra complexa, articulando elementos narrativos e visuais com questões profundas de ordem social, política e identitária. Por meio da perspectiva da Teoria Construtivista das Relações Internacionais, a série revela uma dinâmica que, mesmo sendo fictícia, espelha realidades observáveis nas relações entre Estados dentro do Sistema Internacional, sendo as estruturas do sistema internacional construídas socialmente e tendo os interesses e identidades dos Estados moldados por essas interações, e não determinadas exclusivamente pela distribuição de poder.
Tal lógica se aplica diretamente a relação entre Piltover e Zaun, cidades que personificam entes políticos com identidades construídas ao longo do tempo, moldadas por experiências históricas de exclusão, resistência e confronto, com Piltover representando o domínio da ordem e do progresso, com a percepção de superioridade técnica e moral, enquanto Zaun (o “Outro”) se configura como um espaço de resistência e de identidade marginalizada, fruto das desigualdades impostas por seu vizinho hegemônico.
Ademais, Arcane também demonstra como a identidade é relacional, sendo construída não de maneira isolada, mas sempre em contraste com um “outro” percebido como diferente ou inferior. Tal visão está no centro do construtivismo de Wendt, destacando que a natureza do sistema internacional depende da maneira como os atores se relacionam, atribuem significados e constroem normas coletivas. Na série, a ausência de mecanismos eficazes de diálogo e cooperação entre Piltover e Zaun leva a um ciclo contínuo de violência, desconfiança e disputas por poder e autonomia, se espelhando diretamente no próprio sistema internacional.
Portanto, a análise de Arcane a partir de tal teoria discutida no texto permite não apenas explorar as dimensões simbólicas e políticas da série, mas também demonstra como as obras de ficção podem servir como instrumentos analíticos nas Relações Internacionais. A série contribui para reforçar a relevância do construtivismo enquanto ferramenta teórica capaz de interpretar os conflitos e interações do mundo real. Assim, Arcane representa uma potência de produções midiáticas na problematização de temas cruciais da política internacional contemporânea.
REFERÊNCIAS:
DA SILVA, Luis Gabriel Pereira. ARCANE, LEAGUE OF LEGENDS E TRANSMÍDIA: Investigando os diferentes públicos da série. Intercom. 23º Congresso de Ciências da Comunicação na Região Centro-Oeste. Mato Grosso do Sul, 2023.
DIAS, Letícia Anne Ribeiro; MANDAJI, Carolina Fernandes da Silva. A representação do vilanesco em “Arcane”: Uma reflexão crítica acerca da caracterização visual no papel antagonista. Intercom. 47º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação.Univali. Santa Catarina, 2024.
GABRIELA, Barbosa. O Construtivismo e Suas Versões no Estudo das Relações Internacionais. V Congresso Latinoamericano de Ciência Política. Asociación Latinoamericana de
Ciencia Política, Buenos Aires, 2010.
ONUF, Nicholas. World of our making: Rules and rule in social theory and international relations. Routledge, 2012.
WENDT, Alexander. Social Theory of International Politics. Cambridge: Cambridge University Press, 1999.
