Alciane Carvalho Diasacadêmica do 7º semestre de Relações Internacionais 

O racismo ambiental, enquanto categoria analítica, emerge como um fenômeno estrutural que evidencia a interseccionalidade entre classe, raça e degradação socioambiental. Conforme definido por Bullard (2005), trata-se de um mecanismo sistêmico pelo qual comunidades marginalizadas – majoritariamente negras, indígenas e periféricas – são expostas de forma desproporcional a riscos ambientais, carências infraestruturais e políticas públicas excludentes. Esse quadro não se configura como mera coincidência, mas como resultado de um projeto político-econômico que naturaliza a segregação espacial e a precarização da vida nas periferias urbanas. Em Belém do Pará, a transposição do esgoto do bairro nobre da Doca para a comunidade da Vila da Barca exemplifica com clareza essa dinâmica perversa, revelando como o racismo ambiental se materializa através de decisões técnicas aparentemente neutras, mas profundamente marcadas por desigualdades históricas.  

Conforme reportagem da Agência Pública, o sistema de bombeamento que redireciona os efluentes da Doca para a Vila da Barca opera sem qualquer tratamento prévio, despejando dejetos diretamente em canais que cortam a comunidade. Esse processo, longe de ser uma solução técnica adequada, configura-se como uma externalização deliberada de custos ambientais, transferindo os impactos negativos do desenvolvimento urbano para uma população já vulnerabilizada. Dados do Instituto Trata Brasil (2023) apontam que apenas 32% do esgoto em Belém é coletado e tratado adequadamente, sendo que essa carência incide com maior gravidade em áreas periféricas como a Vila da Barca, onde os índices de doenças de veiculação hídrica – como hepatite A, leptospirose e diarreias crônicas – são significativamente superiores à média municipal (SECON-PA, 2024).  

A omissão do poder público em garantir saneamento básico à comunidade não é um descaso aleatório, mas uma escolha política que reflete o que Harvey (2005) denomina “acumulação por espoliação”, na qual a marginalização de certos grupos sociais permite a manutenção de privilégios para outros. Enquanto a Doca, bairro de elite situado na orla turística de Belém, desfruta de infraestrutura urbana qualificada, a Vila da Barca – território historicamente ocupado por populações negras e migrantes de baixa renda – é tratada como zona de sacrifício, onde a violação de direitos básicos é tolerada e naturalizada.   

A perspectiva crítica de Robert Cox (1981) oferece um aporte teórico fundamental para desvendar as estruturas de poder que sustentam essa desigualdade. Em sua análise das relações internacionais, Cox postula que a ordem hegemônica não apenas produz hierarquias globais, mas também se reproduz em escalas locais através de mecanismos que legitimam a dominação. No contexto urbano de Belém, a gestão diferenciada do saneamento básico exemplifica essa dinâmica: a decisão de transferir os resíduos de um bairro rico para uma comunidade pobre não é um ato isolado, mas parte de uma racionalidade política que prioriza interesses econômicos em detrimento da justiça socioambiental.  

Complementarmente, o pensamento de Benedito Nunes (1999) permite uma leitura localizada desse fenômeno. Em suas reflexões sobre a Amazônia urbana, Nunes destaca como Belém foi historicamente construída sob uma lógica dual: de um lado, a “cidade formal”, planejada e integrada aos circuitos econômicos hegemônicos; de outro, a “cidade invisível”, composta por territórios periféricos abandonados à própria sorte. A Vila da Barca, nesse sentido, é um espaço de invisibilização deliberada, onde a ausência de políticas públicas não é um acidente, mas um projeto que remonta às estruturas coloniais de exclusão. Como aponta Nunes (1999, p. 78), “a periferia de Belém não é um vazio, mas um espaço de contenção, onde se depositam os indesejáveis e seus problemas”.    

O caso da Vila da Barca explicita a urgência de se repensar o modelo de gestão urbana em Belém, rompendo com a lógica perversa do racismo ambiental. Não basta denunciar a transferência de esgoto; é necessário questionar as estruturas de poder que permitem que tal violação ocorra. Como propõe Acselrad (2002), a justiça ambiental exige não apenas a universalização do saneamento básico, mas também a democratização das decisões sobre o território, garantindo que comunidades historicamente silenciadas tenham voz ativa no planejamento urbano.  

Além disso, é fundamental que o Estado seja responsabilizado por suas omissões. A inércia diante da contaminação da Vila da Barca configura violação de direitos humanos fundamentais, como o direito à saúde e a um meio ambiente equilibrado, previstos tanto na Constituição Federal (Art. 225) quanto em tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, como o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966). Portanto, a luta da Vila da Barca não é apenas por tubulações e estações de tratamento, mas pelo reconhecimento de sua dignidade e pelo fim da política de morte que define quem merece viver com qualidade e quem deve ser condenado à degradação.  

REFERÊNCIAS:

ACSELRAD, H. Justiça ambiental e construção social do risco. Desenvolvimento e Meio Ambiente, 2002. 

Assunção, Fernando. Favela de palafitas recebe esgoto e entulhos de bairro nobre em obra da COP 30. Agência Pública. Mar, 2025. Disponível em: https://www.google.com/amp/s/apublica.org/2025/03/favela-em-belem-recebe-esgoto-e-entulhos-de-obra-da-cop30/%3famp

BULLARD, R. D. Dumping in Dixie: Race, Class, and Environmental Quality. Westview Press, 2005.  

COX, R. W. Social forces, states and world orders. Millennium: Journal of International Studies, 1981.  

HARVEY, D. O neoliberalismo: história e implicações. Loyola, 2005.   – NUNES, B. A cidade e seus duplos. Editora Paka-Tatu, 1999.

Instituto Trata Brasil. “Ranking do Saneamento Básico – Edição 2023.”  

Secretaria de Estado de Construção e Habitação do Pará (SECON-PA). “Diagnóstico Socioambiental da Vila da Barca.” 2024.