Yago Cruz da Costa, acadêmico do 7° semestre de Relações Internacionais 

Ficha Técnica:

Ano: 2014

Direção: Christopher Nolan

Roteiro: Jonathan Nolan, Christopher Nolan

Distribuição: Paramount Pictures / Warner Bros. Pictures

Gênero: Ficção Científica, Drama, Aventura

País: Estados Unidos, Reino Unido

Em um futuro não fictício e distópico, a Terra está morrendo. Tempestades de poeira assolam o planeta, plantações inteiras são destruídas por uma praga, a fome se alastra e a humanidade parece fadada a um fim lento e sufocante. Nesse cenário, a obra de Christopher Nolan, “Interestelar” (2014), nos leva a uma jornada épica através do espaço sideral e pelas complexas relações entre conhecimento científico e poder institucional. Para além da espetáculo visual que o filme nos proporciona e da trama extremamente emocionante, o filme oferece grandes possibilidades para uma análise sob a ótica pós-moderna, especialmente por meio do conceito de saber-poder desenvolvido por Michel Foucault, que nos diz que não há saber neutro, já que todo o conhecimento está inserido em uma relação de dependência, onde não há “saber” que não produza “poder” e “poder” que não produza “saber”, Segundo Foucault (2006) a medicina surgiu de práticas de produção de saber (pesquisas e estudos) que se tornaram “poder” (como técnicas cirúrgicas) e através do exercício do poder novos saberes são criados. 

O longa-metragem acompanha Joseph Cooper (Matthew McConaughey), um ex-piloto da NASA que se tornou agricultor em um mundo que desvaloriza a exploração espacial e o desenvolvimento científico em favor da produção de alimentos. Contudo, uma série de fenômenos anômalos em sua casa o levam, juntamente de sua filha Murph (Mackenzie Foy, Jessica Chastain e Ellen Burstyn), a descobrir as coordenadas de uma instalação secreta da NASA, agora operando clandestinamente. Lá, ele reencontra o Professor Brand (Michael Caine), que revela a gravidade da situação terrestre e a existência de um plano para salvar a humanidade: a missão Lazarus. 

Anos antes, doze astronautas atravessaram um buraco de minhoca que surgiu misteriosamente, em busca de planetas potencialmente habitáveis em uma outra galáxia. Agora, com dados preliminares de três mundos promissores, uma nova missão é preparada. Cooper, é recrutado para integrar a missão, o que o obriga a deixar para trás seus filhos, confiando na promessa do Professor Brand de solucionar uma equação que permitiria a migração em massa da população do planeta (Plano A). Enquanto que a alternativa, o Plano B, consiste em estabelecer uma colônia no novo mundo com embriões congelados, abandonando a população terrestre. A tripulação da Endurance, composta por Cooper, Amelia Brand (Anne Hathaway), Romilly (David Gyasi), Doyle (Wes Bentley), e os robôs TARS e CASE, embarca em uma viagem, enfrentando os perigos da relatividade temporal, buracos negros e a própria fragilidade humana diante do desconhecido e das verdades ocultas.

O filme “Interestelar” pela perspectiva foucaultiana revela como a ciência e a tecnologia não são meras ferramentas neutras, mas sim elementos centrais em redes de saber-poder. A NASA, mesmo operando secretamente, funciona como um dispositivo foucaultiano por excelência. Foucault descreve, um dispositivo como um “conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas” (FOUCAULT, 1979 apud COSTA; SILVA, 2021). 

A NASA em “Interestelar” articula o discurso da salvação da humanidade, a instituição científica com seus protocolos, a arquitetura secreta da base, as decisões sobre quem vai na missão, as leis implícitas da hierarquia e do sigilo, e os enunciados científicos que justificam suas ações. Sua função estratégica é clara: gerenciar a crise e garantir a sobrevivência da espécie, respondendo à urgência do planeta moribundo. 

O saber-poder é encarnado na figura do Professor Brand e na própria missão. O conhecimento científico avançado sobre física de buracos de minhoca, relatividade e engenharia espacial torna-se a fonte primordial de poder – o poder de traçar o caminho para a salvação e de controlar o destino de bilhões. Como Foucault argumenta, o poder não está localizado em um único ponto, e o saber é uma condição intrínseca para seu exercício (FERREIRINHA; RAITZ, 2010). Quem detém o conhecimento específico (Brand, Cooper, Romilly, Amélia) possui uma forma de poder, mas também está sujeito a ele.

A tecnologia em “Interestelar” é a manifestação concreta dessas relações de saber-poder. As naves Endurance e Ranger, os módulos de hibernação, os robôs TARS e CASE com suas personalidades ajustáveis e capacidades analíticas, são tecnologias de poder. Elas permitem não apenas a exploração do desconhecido, mas também o controle sobre os corpos (hibernação), o ambiente (suporte de vida) e a informação (análise de dados, comunicação). O Dr. Mann (Matt Damon), por exemplo, utiliza seu robô desativado e dados falsificados como ferramenta de engano e poder para garantir sua própria sobrevivência, demonstrando como a tecnologia pode ser instrumentalizada dentro dessas relações.

A distinção entre o Plano A e o Plano B nos mostra a dimensão do biopoder. Segundo Foucault (1999 apud FERREIRINHA; RAITZ, 2010, p. 372) o biopoder é uma forma de poder que se volta para a gestão da vida das populações. Em “Interestelar“, a NASA assume a gestão da própria sobrevivência da espécie humana. A decisão de priorizar o Plano B em detrimento do Plano A, mantida em segredo pelo Professor Brand, é um exercício de biopoder. É a administração calculista da vida, decidindo quem terá futuro e quem será abandonado, tudo justificado pela suposta insolubilidade da equação. O controle da informação sobre a verdadeira natureza dos planos é, portanto, uma estratégia fundamental de poder, moldando as ações e esperanças dos envolvidos, especialmente Cooper.

Interestelar“, portanto, transcende a aventura espacial. Ao dispor a ciência e a tecnologia no centro da luta pela sobrevivência, o filme nos faz refletir sobre como o conhecimento é produzido, distribuído e utilizado como instrumento de poder. A busca por novos mundos é também uma busca por controle, pela definição do futuro e pela administração da vida. A perspectiva foucaultiana nos ajuda a desnaturalizar a ciência, enxergando-a não como um caminho neutro para a verdade, mas como um campo de batalha onde diferentes saberes e poderes se enfrentam, moldando nossa realidade e nossas possibilidades.

REFERÊNCIAS:

COSTA, Roberta Liana Damasceno; SILVA, Thiago Ayres de Menezes. MICHEL FOUCAULT E O PODER: A CRÍTICA ÀS TECNOLOGIAS DE PODER E A COMPREENSÃO DOS JOGOS POLÍTICOS NA CONTEMPORANEIDADE. Kalagatos – Revista de Filosofia, Fortaleza, v. 18, n. 38, p. 1-18, 2021. Disponível em: https://revistas.uece.br/index.php/kalagatos/article/view/8216. Acesso em: 26 maio 2025.

FERREIRINHA, Isabella Maria Nunes; RAITZ, Tânia Regina. As relações de poder em Michel Foucault: reflexões teóricas. Rev. Adm. Pública, Rio de Janeiro, v. 44, n. 2, p. 367-383, abr. 2010. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rap/a/r3mTrDmrWdBYKZC8CnwDDtq/. Acesso em: 26 maio 2025.

FOUCAULT, Michel. O nascimento da clínica: uma arqueologia do olhar médico. Tradução de Vera Portocarrero. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.


FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Organização e tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.