
Keity Oliveira (Internacionalista formada pela UNAMA)
Lara Lima (Internacionalista formada pela UNAMA)
O PDL 717/2024 surge em um contexto de intensos debates sobre os direitos territoriais dos povos indígenas no Brasil, refletindo a persistente tensão entre os interesses do Estado, do agronegócio e das comunidades originárias. Embora a Constituição Federal de 1988 tenha garantido avanços significativos, como o reconhecimento da organização social, costumes, línguas e, especialmente, o direito às terras tradicionalmente ocupadas, propostas legislativas como o PDL 717/2024 colocam em risco essas conquistas.
Historicamente, a relação entre os povos indígenas, a preservação do meio ambiente e da biodiversidade é uma relação semiótica, ritualista e única. Nesse sentido, não tem como falar sobre preservação das florestas e sua biodiversidade sem levar em consideração os povos indígenas e seu papel. Davi Kopenawa, líder Yanomami, reafirma essa posição em seu livro “A Queda do Céu” (2015), ao dizer que:
“Na floresta, a ecologia somos nós, os humanos. Mas são também, tanto quanto nós, os xapiri, os animais, as árvores, os rios, os peixes, o céu, a chuva, o vento e o sol. É tudo o que veio à existência na floresta, longe dos brancos, tudo o que ainda não tem cerca” (p. 480).
Na Amazônia, o modo de sobrevivência e organização social das comunidades tradicionais depende diretamente da conservação da biodiversidade, isso porque os povos dependem dos recursos naturais para a sua sobrevivência, uma necessidade que vai além de uma produção de subsistência, mas também a conservação com a sacralização dos elementos da natureza.
Outrossim, essa relação é estabelecida a partir do reconhecimento da floresta como uma entidade suprema e criadora que deve ser protegida e cuidada. Tal realidade se opõe ao modo de produção capitalista que constitui a estrutura fundiária brasileira, o qual é marcada pela exploração predatória de um “pedaço de terra”, pautando-se em uma justificativa de viés científico-econômico que inviabiliza a subjetividade de pertencimento a um determinado espaço.
Em sequência, a demarcação dos territórios indígenas atinge profundamente a dinâmica de conservação desse espaço, no qual há um efeito inibidor do desmatamento e de outras atividades ilegais relacionada à presença e o reconhecimento de Terras Indígenas, direito ancestral previsto na Constituição Federal brasileira.
Diante disso, o artigo 19 do Estatuto do Índio foi a norma que determinou a demarcação das Terras Indígenas (TIs). Cabe mencionar, no entanto, que a localização e a extensão de uma terra indígena não são determinadas por critérios de oportunidade e a conveniência do Poder Público, mas sim pela ocupação tradicional.
A demarcação é, portanto, um ato declaratório e vinculado, conforme dispõe o art. 231 e seus §§ 1º e 2º, da Constituição Federal, devendo haver a demarcação de forma integral e contínua, sob pena de violação constitucional (Calgaro; Coimbra; La Flor, 2019). E isso se justifica já que a ocupação indígena é imemorial, é anterior à própria existência do Estado, precede à própria Federação.
O Brasil possui 445 Terras Indígenas tradicionalmente ocupadas homologadas que abrangem um território de 107.449.595 hectares (Soares, 2024). Somam-se a esse número, 15 Terras Indígenas demarcadas pelo Serviço de Proteção aos Índios, órgão substituído pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI).
Ainda existem outras 261 áreas tradicionalmente ocupadas que seguem aguardando o andamento de seus processos demarcatórios: são 151 em estudo e outras seis áreas com Portarias de Restrição de Uso para proteção de povos indígenas isolados, 36 identificadas pela FUNAI e 68 terras já declaradas pelo Ministério da Justiça à espera do decreto homologatório. A esses números, somam-se ainda 48 Reservas Indígenas regularizadas e 10 áreas dominiais e, por fim, 20 áreas reservadas em processo de regularização.
Entretanto, apesar do direito assegurado pela Constituição, as atividades ilegais em territórios indígenas, seguidas de violência perpetrada por criminosos, assim como projetos político-econômicos, tendem a deslegitimar cada vez a demarcação de terras indígenas, como a PDL 717/2024.
No dia 28 de maio, o Plenário do Senado Federal aprovou, o Projeto de Decreto Legislativo (PDL) 717/2024, que desmonta o atual modelo de demarcação de Terras Indígenas (TIs) no país. A proposta revoga o artigo 2º do Decreto nº 1.775/1996, norma central que regulamenta os procedimentos administrativos de demarcação de TIs.
Conforme Fasolo e Soares (2025), o projeto também suspende os decretos presidenciais de homologação de duas TIs em Santa Catarina: Toldo Imbu, do povo Kaingang, localizada em Abelardo Luz e Morro dos Cavalos, do povo Guarani, em Palhoça. Ambas são reconhecidas pelo Estado brasileiro há mais de uma década – tendo sido homologadas pela presidência da República em dezembro de 2024, após anos de mobilização indígena.
O texto foi aprovado em votação simbólica no plenário poucas horas após ter sido aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Casa. A proposta agora segue para análise na Câmara dos Deputados e acentua a preocupação de organizações indígenas e da sociedade civil.
Na CCJ, a revogação das demarcações se deu sob o argumento de que estão em desacordo com a Lei do Marco Temporal (Lei 14.701), aprovada pelo Congresso Nacional em 2023. O líder do governo no Senado, Jaques Wagner (PT-BA), criticou a proposta, ressaltando que os processos demarcatórios em questão são anteriores à legislação do Marco Temporal e que os decretos foram assinados no final do ano passado, após longos processos administrativos que iniciaram em 1990.
Para Dinamam Tuxá, coordenador executivo da Apib, a aprovação do PDL representa uma afronta direta à Constituição Federal, já que o processo de homologação dessas teras seguiu com todos os trâmites legais, de acordo com o Decreto 1.775 e com a própria Constituição (Fasolo e Soares, 2025). Nesse sentido, Tuxá afirma que o PDL fomenta a insegurança jurídica e a violência nos territórios, abrindo caminho para o avanço de uma ofensiva legislativa articulada por setores conservadores e ruralistas.
Em síntese, é evidente que a preservação da biodiversidade na Amazônia está relacionada ao reconhecimento e à proteção dos territórios indígenas. A tentativa de deslegitimar esses direitos, como no caso do PDL 717/2024, não apenas viola a Constituição, mas também ameaça os modos de vida tradicionais e o equilíbrio ambiental construído historicamente por esses povos.
Garantir a demarcação e a integridade das Terras Indígenas é, portanto, uma medida essencial para a justiça socioambiental e para a defesa do futuro da floresta e do planeta.
Diante da temática, recomenda-se o documentário “Fortalecimento para o futuro do território” (2025), dirigido por Luis Taboas. A obra retrata a 21ª Semana Cultural da Escola Itaty, realizada na Terra Indígena Morro dos Cavalos, em Palhoça, Santa Catarina. Com o tema Yvy Rupa Mbaraete Tenonde Rã, o evento teve como propósito reafirmar a força e a continuidade do território para as futuras gerações. Neste ano, a celebração foi ainda mais significativa, marcada pela conclusão do processo de demarcação, com a homologação e o registro oficial da terra, uma conquista histórica fruto de décadas de luta e resistência do povo Guarani. Disponível para ser assistido no Instagram, através do link a seguir:
<https://www.instagram.com/reel/DIuaeJ2xtuj/?utm_source=ig_web_button_share_sheet>
Também se recomenda o documentário “Construindo Memórias: A Trajetória do Acampamento Terra Livre” (2024), produzido pela Apib por meio da Comissão da Trajetória do ATL. O material foi exibido na “Tenda da Trajetória” durante os dias 22 a 26 de abril de 2024, em Brasília, como parte das comemorações dos 20 anos de mobilização do ATL. A instalação resgatou memórias de luta e resistência do movimento indígena, fortalecendo a construção coletiva da identidade e da história dos povos originários ao decorrer dos anos. Disponível para ser assistido no YouTube, através do link a seguir:
<https://youtu.be/5KOLBxDvkbM?si=VEaPglVqZfQ-EEj5>
Por fim, recomenda-se o trabalho da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), organização sem fins lucrativos, criada durante o Acampamento Terra Livre (ATL) de 2005, principal mobilização nacional dos povos indígenas, realizada anualmente desde 2004 para dar visibilidade à luta por seus direitos e pressionar o Estado brasileiro. Surgida de forma coletiva e de base, a Apib reúne organizações regionais com o intuito de fortalecer a união entre os povos, promover articulações em todo o país e enfrentar as constantes ameaças aos seus direitos.
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REFERÊNCIAS:
CALGARO, C.; COIMBRA, D.; LA FLOR, M. J. A DEMARCAÇÃO DE TERRAS INDÍGENAS NO BRASIL E AS LIÇÕES DO MOVIMENTO CONSTITUCIONALISTA LATINO-AMERICANO INSURGENTE. Revista da Faculdade de Direito da UFG, Goiânia, v. 43, 2019. Disponível em: < https://revistas.ufg.br/revfd/article/view/58466 > Acesso em: 9 de junho de 2025.
FASOLO, Carolina; SOARES, Mariana. Senado aprova projeto que desestrutura demarcação de Terras Indígenas. Instituto Socioambiental. Publicado em: 29 de maio de 2025. Disponível em: < https://www.socioambiental.org/noticias-socioambientais/senado-aprova-projeto-que-desestrutura-demarcacao-de-terras-indigenas#:~:text=Localizada%20no%20munic%C3%ADpio%20de%20Abelardo,territ%C3%B3rio%20inicialmente%20destinado%20aos%20Kaingang. > Acesso em: 09 de junho de 2025.
KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu. Palavras de um xamã Yanomami. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Companhia das Letras, 2015, 729 p. Acesso em: 12 de novembro de 2023.
SOARES, Mariana. Governo Federal homologa três Terras Indígenas; saiba quais são. Instituto Socioambiental. Publicado em: 06 de dezembro de 2024. Disponível em: < https://www.socioambiental.org/noticias-socioambientais/governo-federal-homologa-tres-terras-indigenas-saiba-quais-sao#:~:text=O%20pa%C3%ADs%20agora%20possui%20445,Prote%C3%A7%C3%A3o%20aos%20%C3%8Dndios%20(SPI). > Acesso em: 09 de junho de 2025.
