Railson Silva (acadêmico do 8º semestre de RI da UNAMA)

Em um mundo marcado por conflitos, mas também por cooperação, poucos pensadores conseguiram capturar a complexidade das relações entre Estados com tanta profundidade quanto Hedley Bull (1932–1985). Diplomaticamente erudito e intelectualmente provocador, Bull dedicou sua carreira a desvendar como a ordem emerge em meio à aparente anarquia internacional. Suas reflexões não apenas transformaram a Escola Inglesa das Relações Internacionais, mas também continuam a ecoar em debates contemporâneos sobre guerra, direito internacional e a busca por justiça em um sistema desigual.

Nascido na Austrália e formado em Oxford, Bull era um acadêmico que transitava entre a teoria e a prática, interessado tanto nos grandes dilemas da política mundial quanto no papel dos indivíduos e das instituições na construção da sociedade internacional. Sua obra mais influente, “The Anarchical Society” (1977), não é apenas um tratado teórico, mas um convite a pensar além das dicotomias simplistas entre poder e moralidade. Nele, Bull argumenta que os Estados, embora soberanos e frequentemente rivais, compartilham regras, valores e instituições que tornam possível uma ordem mínima —mesmo que imperfeita.

Hedley Bull não era apenas um teórico das Relações Internacionais — era um observador atento da humanidade em seu eterno dilema entre conflito e cooperação. Sua análise da sociedade internacional não parte de fórmulas abstratas, mas da realidade complexa de Estados que, como pessoas em uma comunidade, oscilam entre o interesse próprio e a necessidade de convivência. Em The Anarchical Society (1977), ele buscar apresentar uma visão além da anarquia, na qual o sistema internacional não tem um governo central, mas isso não significa que seja um caos. Há regras, há entendimentos, há uma frágil — mas real  —ordem que sustenta o mundo como o conhecemos.

Bull via os Estados como atores conscientes, capazes de reconhecer que certas normas, como soberania, diplomacia e direito internacional, beneficiam a todos, mesmo em meio a disputas e conflitos de interesse. Essa ideia lembra a forma como sociedades humanas, mesmo com conflitos, criam leis e costumes para evitar a violência descontrolada. Ele argumentava que, por trás das rivalidades políticas, existia um reconhecimento mútuo de que a desordem total seria catastrófica.

Martin Wightm (1977), seu colega na Escola Inglesa, acrescentava que essa sociedade internacional não era apenas racional, mas também cultural — formada por tradições compartilhadas, como a diplomacia europeia ou o direito romano. Era como se Bull dissesse que os Estados brigam, mas também sabem que, sem algumas regras básicas, todos perdem.

Para Bull, a ordem internacional é mantida por instituições fundamentais. Elas são como as instituições de uma cidade, às vezes imperfeitas, mas essenciais para a vida em comum: 1) a guerra – Bull a entendia como um instrumento de último recurso, regulado por normas (como o conceito de “guerra justa”). Era a forma violenta, mas limitada, de resolver disputas quando a diplomacia falhava; 2) o equilíbrio de poder – não era apenas um jogo de forças, mas um freio natural contra a dominação global por uma única potência; 3) a diplomacia – o diálogo entre Estados, mesmo em tempos de tensão, era para ele a arte de evitar que desentendimentos se tornassem catástrofes.

Buzan (2004) ampliaria essa ideia, mostrando como atores não estatais —como ONGs e empresas — também moldam essa “sociedade”. Bull, porém, mantinha um pé no ceticismo: para ele, os Estados ainda eram os protagonistas, pois detinham o poder de fazer ou desfazer as regras.

Além disso, um dos debates mais relevantes na obra de Bull é a relação entre ordem e justiça. Ele reconhece que a ordem internacional muitas vezes privilegia os Estados mais poderosos, marginalizando demandas por justiça distributiva e direitos humanos (Bull, 1977). No entanto, Bull alerta que a busca por justiça radical pode desestabilizar a ordem, gerando conflitos.

Andrew Hurrell (2007) criticaria essa postura anos depois, argumentando que Bull subestimava a urgência de mudanças. Para Hurrell, a justiça não podia ser um “luxo” secundário — era uma condição para a própria sobrevivência da ordem em um mundo de desigualdades gritantes.

Em suma, as contribuições de Hedley Bull para a Escola Inglesa permanecem fundamentais para as Relações Internacionais. Bull não era um utópico; era um realista que acreditava na possibilidade de progresso. Suas obras buscam enfatizar que, mesmo sem um governo mundial, os Estados — como pessoas — podem escolher cooperar, mesmo que por interesse próprio. Em um mundo marcado por crises multilaterais, ascensão de potências revisionistas e desafios transnacionais, revisitar Bull é essencial para pensar caminhos que equilibrem estabilidade e transformação.

Referências:

BUZAN, B. From International to World Society? Cambridge: Cambridge University Press, 2004. Disponível em: <https://pt.scribd.com/doc/103524934/BUZAN-Barry-From-International-to-World-Society-2004&gt;

BULL, H. The Anarchical Society: A Study of Order in World Politics. Londres: Macmillan, 1977. Disponível em: < http://slantchev.ucsd.edu/courses/ps240/03%20Anarchy,%20Hierarchy,%20and%20Sovereignty/Bull%20-%20The%20Anarchical%20Society%20(Ch%201-3).pdf>

HURRELL, A. On Global Order: Power, Values, and the Constitution of International Society. Oxford: Oxford University Press, 2007.

WIGHT, M. Systems of States. Leicester: Leicester University Press, 1977.