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Por Matheus Castanho Virgulino – internacionalista formado pela UNAMA
Poucos países são tão rotineiramente associados com uma identidade militarista quanto a Alemanha. Desde os pelejadores Germânicos da era dos Césares, até os cavaleiros Teutônicos, os disciplinados soldados Prussianos, e as ofensivas continentais das Primeira e Segunda Guerras Mundiais. Conforme a sociedade Alemã se democratizou, e a ansiedades da Guerra Fria tornaram-se assuntos passados, esse belicismo gradualmente foi posto de lado. Hoje, a Guerra da Ucrânia ressuscitou o titã militar do velho continente, agora como potência ocidental e pan-europeia.
A posição da Alemanha na Europa, tanto em tempos passados quanto no presente, foi profundamente impactada pelas circunstâncias de sua unificação pelo reino da Prússia em 1871. O militarismo prussiano, mais do que uma simples doutrina de guerra, foi um sistema que fundiu o Estado, a sociedade e as forças armadas, deixando um impacto intrínseco na cultura militar e industrial da Alemanha.
Forjado sob a filosofia de reis como Frederico, o Grande, e consolidado por Otto von Bismarck, o sistema prussiano operava sob um princípio que o conde de Mirabeau, um estadista francês, famosamente descreveu: “A Prússia não é um Estado com um exército, mas um exército com um Estado” (SHEA, 2025). Isso resultou em uma sociedade profundamente organizada, valorizando o dever, ou Pflicht, e reverente ao Estado, uma reverência que podemos encontrar em certos filósofos prussianos como Hegel (CLARK, 2006).
Essa cultura foi o motor por trás das vitórias nas Guerras de Unificação, que cimentaram a hegemonia prussiana e criaram o Império Alemão em 1871. O impacto transbordou para a indústria: a necessidade de padronização de armamentos impulsionou a engenharia de precisão; a exigência de mobilizar tropas rapidamente levou à criação de uma das mais avançadas redes ferroviárias do mundo; e o próprio serviço militar obrigatório gerou uma força de trabalho disciplinada e tecnicamente instruída (KITCHEN, 2015).
A segunda guerra mundial e a subsequente divisão da Alemanha durante a Guerra Fria foram um divisor de água. A Alemanha Ocidental, que depois tornou-se o coração da Alemanha reunificada, formulou um pivô em favor da social-democracia e a desmilitarização da sociedade germânica, apesar de manter-se geopoliticamente alinhada à OTAN e aos EUA.
O governo do chanceler Willy Brandt iniciou a Neue Ostpolitik, a nova política oriental, de détente com a URSS, culminando com os Acordos de Helsinki de 1975, que definiram uma arquitetura de segurança baseada na soberania (CÂMARA, 2013). Mas a invasão da Rússia contra a Ucrânia, a primeira guerra de expansão territorial no continente desde a Segunda Guerra Mundial, forçou um renascimento militar-industrial teutônico.
Este renascimento vem na forma do Zeitenwende, a “virada dos tempos” proclamada pelo chanceler Olaf Schulz em 2022, logo após a invasão Russa na Ucrânia (CHATAM HOUSE, 2022). A antiga doutrina de Wandel durch Handel, a crença de que a mudança viria através do comércio e da interdependência econômica com adversários como a Rússia, evaporou-se com as primeiras explosões em Kiev.
Em lugar deste distanciamento geopolítico por meio de sinergia econômica, surge um novo paradigma, financiado por um fundo especial de 100 bilhões de euros destinado a modernizar a Bundeswehr (as forças armadas alemãs) e a elevar permanentemente os gastos de defesa para além da meta de 2% da OTAN (DSEI, 2025). O outrora hesitante gigante econômico agora busca forjar para si o exército convencional mais poderoso da Europa.
Na prática, essa transformação já reverbera por todo o continente. Para os parceiros do flanco oriental da OTAN, como a Polônia e os estados Bálticos, a mudança é um alívio longamente esperado (GERMAN FEDERAL MINISTRY OF DEFENCE, 2024). A Alemanha, antes vista como um freio à ação coletiva, agora se posiciona como um esteio da defesa europeia, comprometendo-se a estacionar uma brigada de combate permanente na Lituânia — um movimento sem precedentes na história do pós-guerra. Este não é mais o poder contido do século XX, mas uma força projetada para garantir a estabilidade em suas fronteiras orientais.
Indo além, a cooperação industrial e militar com a própria Ucrânia demonstra a profundidade desta nova identidade. Gigantes da defesa alemã, como a Rheinmetall, não estão apenas enviando equipamentos, mas estabelecendo empreendimentos conjuntos para produzir munições, veículos de combate de infantaria Lynx e realizar a manutenção de blindados em solo ucraniano. Além disso, a joint venture Rheinmetall Ukrainian Defense Industry LLC está a dar mais fôlego ao esforço de defesa de Kiev (RHEINMETALL, 2025). A Alemanha está, efetivamente, exportando seu poderio industrial-militar para fortalecer a resiliência de um aliado em guerra, criando uma simbiose estratégica que redefine seu papel como arsenal da Europa.
Contudo, este despertar não ocorre sem tensões. No coração do “motor” europeu, a França observa com uma mistura de aprovação e ansiedade. Paris, que por anos clamou por uma Alemanha mais robusta para impulsionar a autonomia estratégica europeia, agora teme que o Zeitenwende alemão seja excessivamente focado na OTAN e em equipamentos americanos, preterindo projetos de defesa conjuntos.
Para Max Weber, a característica definidora do Estado moderno é o seu monopólio do uso legítimo da força física dentro de um determinado território (WEBER, 2021). Por mais de meio século, a República Federal da Alemanha, embora soberana, efetivamente terceirizou uma porção significativa deste monopólio. Confiando primariamente na garantia de segurança dos Estados Unidos através da OTAN, a Alemanha permitiu que suas forças armadas, a Bundeswehr, se atrofiassem. A burocracia estatal, outro conceito central de Weber, foi otimizada para a administração de um próspero estado de bem-estar social, e não para a gestão de uma máquina de defesa robusta.
A Zeitenwende e a Cooperação Industrial-Militar entre Alemanha e Ucrânia podem ser interpretadas como a dramática reafirmação deste princípio weberiano fundamental. A ambição de se tornar a espinha dorsal da defesa na Europa não é apenas uma declaração geopolítica, mas um projeto de reconstrução da capacidade estatal para cumprir sua função mais elementar.
REFERÊNCIAS:
CÂMARA, Marcelo P.S. A Política externa alemã na República de Berlim: de Gerhard Schröder a Angela Merkel. Brasília: Funag, 2013.
CHATHAM HOUSE. How Russia’s invasion changed German foreign policy. Chatham House, 2 nov. 2022. Disponível em: https://www.chathamhouse.org/2022/11/how-russias-invasion-changed-german-foreign-policy. Acesso em: 1 jul. 2025
CLARK, Christopher. Iron Kingdom: The Rise and Downfall of Prussia, 1600–1947. Belknap Press, 2006.
DSEI. The end nears for Germany’s ‘special defence fund’. New Chancellor, new investment?. DSEI, 2025. Disponível em: https://www.dsei.co.uk/news/end-nears-germanys-special-defence-fund-new-chancellor-new-investment. Acesso em: 1 jul. 2025.
FRIENDS OF EUROPE. “Aux armes citoyens”: Europe’s defence, like charity, begins at home. Friends of Europe. Disponível em: https://www.friendsofeurope.org/insights/critical-thinking-aux-armes-citoyens-europes-defence-like-charity-begins-at-home/. Acesso em: 1 jul. 2025.
GERMAN FEDERAL MINISTRY OF DEFENCE. Lithuania Brigade ready to protect the Baltic region. German Federal Ministry of Defence, 26 jun. 2024. Disponível em: https://www.bmvg.de/en/news/lithuania-brigade-ready-to-protect-the-baltic-region-5944324. Acesso em: 1 jul. 2025.
KITCHEN, Martin. História da Alemanha Moderna. Editora Cultrix, 2015.
RHEINMETALL. Rheinmetall Ukrainian Defense Industry LLC. Rheinmetall. Disponível em: https://www.rheinmetall.com/en/company/subsidiaries/rheinmetall-ukrainian-defense-industry. Acesso em: 1 jul. 2025. WEBER, Max. A Política como Vocação. Editora Vozes, 2021.
