Ana Clara Duarte – Acadêmica do 4° semestre de Relações Internacionais da Unama.

O conflito entre a República Democrática do Congo (RDC) e Ruanda constitui um dos episódios mais emblemáticos das complexidades que envolvem a política internacional no continente africano. Longe de se limitar a uma disputa entre dois Estados, o confronto reflete uma rede de tensões étnicas, interesses geopolíticos e legados coloniais profundamente enraizados na história da região dos Grandes Lagos. Conforme destaca Mazzeo (2009), a configuração pós-colonial do Estado africano — marcada por fronteiras artificiais e fragilidade institucional — contribuiu diretamente para a perpetuação de conflitos locais com alcance transnacional.

A eclosão do genocídio ruandês em 1994, que resultou na morte de aproximadamente 800.000 pessoas, alterou significativamente o equilíbrio político da região (Cukier, 2025). Segundo Lemarchand (2009), o fluxo de refugiados e a reorganização de grupos armados em território congolês intensificaram o ciclo de violência e instabilidade, culminando nas Guerras do Congo (1996–1997 e 1998–2003), consideradas por alguns estudiosos como a “Primeira Guerra Mundial Africana” (Prunier, 2009). A intervenção direta e indireta de Ruanda no leste congolês, sob a justificativa de combater milícias hutus como as Forças Democráticas para a Libertação de Ruanda (FDLR), gerou profundas controvérsias quanto à soberania estatal e à responsabilidade de proteger populações civis.

A instabilidade persistente na RDC tem raízes nas fronteiras arbitrárias herdadas da Conferência de Berlim (1884–1885), quando as potências europeias dividiram a África sem considerar limites étnicos ou geográficos. No caso congolês, o regime de exploração instaurado por Leopoldo II da Bélgica moldou um Estado frágil e dependente de estruturas extrativistas violentas (Mamdani, 2001). Essa “violência originária”, como conceitua Mbembe (2011), deixou marcas profundas na organização política e social do país.

Hoje, a RDC é palco de uma guerra econômica alimentada pela disputa por recursos estratégicos como o coltan e o cobalto — minerais essenciais para a indústria eletrônica global. Estima-se que cerca de 65% das reservas conhecidas desses minerais estejam no território congolês (Cuvelier, 2013). Essa realidade transforma o conflito em um exemplo das “novas guerras” descritas por Kaldor (2012), marcadas por redes econômicas ilegais, milícias armadas e pela erosão das instituições estatais. Desde os anos 1990, mais de cinco milhões de pessoas morreram direta ou indiretamente em decorrência dos conflitos (Autesserre, 2010), enquanto milhões de deslocados enfrentam condições de extrema vulnerabilidade.

O acordo assinado entre a União Europeia e Ruanda em fevereiro de 2024, para a extração e fornecimento de minerais críticos, ilustra a persistência de uma lógica extrativista e neocolonial. Embora os minerais estejam concentrados no solo congolês, o pacto foi firmado com Ruanda, historicamente acusado de envolvimento em atividades ilegais de mineração no Congo (United Nations, 2022). Como alerta Deogratias Muderwa (2025), “na mão de cada usuário de smartphone, talvez haja uma gota de sangue congolês”. Essa afirmação sintetiza a relação entre consumo global, violência local e silenciamento internacional.

Sob a lente da teoria pós-colonial nas Relações Internacionais, essa dinâmica revela uma ordem global hierárquica, em que a linguagem da sustentabilidade e da transição verde legitima formas renovadas de exploração. Como aponta Grovogui (2006), os pactos internacionais muitas vezes mantêm estruturas de dominação que remontam à partilha colonial. A paz proposta nesses termos é superficial e funcional aos interesses geoeconômicos das potências globais.

A assinatura do acordo de paz entre a RDC e Ruanda, mediado pelos Estados Unidos em 27 de junho de 2025, reabre o debate sobre o papel das potências ocidentais como agentes de paz. Segundo Fanon (1961), a figura do “herói branco civilizador” opera para perpetuar a desumanização dos povos colonizados, negando-lhes a autonomia sobre seu futuro. Para Mbembe (2011), a região tornou-se um espaço onde o poder internacional define quem vive e quem morre, em um regime necropolítico que marginaliza corpos negros e territórios africanos.

A paz duradoura na região dos Grandes Lagos não será possível enquanto suas condições estruturais de exploração não forem enfrentadas. Acordos bilaterais que ignoram a origem real dos recursos e as vozes locais apenas perpetuam uma história de expropriação e silenciamento. A análise do recente pacto entre Ruanda e a União Europeia, assim como da mediação norte-americana no acordo de paz, revela a continuidade de práticas coloniais adaptadas ao discurso contemporâneo de progresso e cooperação. Uma verdadeira construção da paz exige o reconhecimento da história, a valorização das vidas africanas e o rompimento com as estruturas globais de dominação.

REFERÊNCIAS

AUTESSERRE, Séverine. The Trouble with the Congo: Local Violence and the Failure of International Peacebuilding. Cambridge: Cambridge University Press, 2010.

CUVELIER, Jeroen. The complexity of resource governance in a context of state fragility: the case of eastern DRC. Resources Policy, v. 38, n. 4, p. 615–622, 2013.

FANON, Frantz. Os condenados da terra. São Paulo: Paz e Terra, 1961.

GROVOGUI, Siba N. Beyond Eurocentrism and Anarchy: Memories of International Order and Institutions. New York: Palgrave Macmillan, 2006.

KALDOR, Mary. New and Old Wars: Organized Violence in a Global Era. Stanford: Stanford University Press, 2012.

LEMARCHAND, René. The Dynamics of Violence in Central Africa. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2009.

MAMDANI, Mahmood. When Victims Become Killers: Colonialism, Nativism, and the Genocide in Rwanda. Princeton: Princeton University Press, 2001.

MAZZEO, Antonio (org.). Estado e política na África: a persistência das crises e os desafios do desenvolvimento. São Paulo: UNESP, 2009.

MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: n-1 Edições, 2011.

MUDERWA, Deogratias. Conflitos no Congo e Ruanda. YouTube, 13 de março de 2025. Disponivel em: https://www.youtube.com/live/pGYgoJ2Ufuo?si=QGuSCUTlVBGt1lE8. Acesso em: 07 de julho de 2025.

PRUNIER, Gérard. Africa’s World War: Congo, the Rwandan Genocide, and the Making of a Continental Catastrophe. Oxford: Oxford University Press, 2009.

UNITED NATIONS. Final report of the Group of Experts on the Democratic Republic of the Congo. Security Council, New York, 2022.