
Por Marília Corrêa Martins – 4° semestre de Relações Internacionais (UNAMA)
No dia 30 de junho, o Papa Leão XIV enviou sua mensagem à 44ª Conferência da FAO. No discurso, o Vaticano demonstrou seguir a tradição de manifestar-se em eventos globais sobre segurança alimentar, reforçando seu papel moral na defesa dos mais vulneráveis. Nesse viés, a carta denunciou com veemência o uso da fome como arma de guerra, criticou a polarização global e exortou a comunidade internacional a agir com coragem e fraternidade, reforçando:
“Matar a população com a fome é uma forma muito barata de fazer guerra. É por isso que hoje, quando a maioria dos conflitos não é travada por exércitos regulares, mas por grupos de civis armados com poucos recursos, queimar terras, roubar gado e bloquear a ajuda são táticas cada vez mais utilizadas por aqueles que pretendem controlar populações inteiras indefesas.” (SANTA SÉ, 2025).
Analisar esse discurso sob a perspectiva da teoria Construtivista das Relações Internacionais e do conceito de necropolítica, sendo este, desenvolvido por Achille Mbembe, permite compreender não apenas os significados construídos em torno da fome, mas também os mecanismos de poder que perpetuam a desigualdade alimentar.
Nesse viés, a perspectiva Construtivista, conforme elaborada por Wendt (1999), oferece um instrumental analítico para compreender o discurso papal como ato performativo de construção normativa. O Papa Leão XIV ao declarar, segundo o IFZ (2025), que “a fome induzida por conflitos armados constitui um pecado contra Deus e contra a humanidade”, ele operou uma ressignificação da segurança alimentar como imperativo moral absoluto, transcendendo as tradicionais justificativas de soberania estatal. Essa intervenção discursiva ocorreu em um momento crítico: dados do Cluster de Nutrição da ONU (2025) revelavam que 93% da população de Gaza enfrentava insegurança alimentar aguda, com taxas de desnutrição infantil superando 30%, números que configuram o que o pontífice denominou “genocídio por inanição”.
Ao invocar princípios éticos universais, como a solidariedade e a dignidade humana, o pontífice reforçou a ideia de que a segurança alimentar é um direito inalienável, influenciando, assim, a maneira como os Estados e organizações internacionais percebem suas obrigações nesse campo. No entanto, a eficácia desse discurso esbarra em estruturas de poder que operam de forma necropolítica, conforme teorizado por Achille Mbembe, o conceito refere-se às práticas políticas que determinam quem pode viver e quem deve morrer, exercendo controle sobre a vida e a morte através de mecanismos econômicos, bélicos e burocráticos.
No contexto da fome, a necropolítica se manifesta na manutenção de sistemas alimentares injustos, nos quais populações marginalizadas são privadas de recursos básicos devido a políticas de exclusão, colonialismos econômicos e negligência estatal. Enquanto o discurso do Papa Leão XIV promove uma narrativa de inclusão e justiça, a realidade material das vítimas da fome é frequentemente moldada por decisões políticas que as relegam a uma condição de “morte lenta”, seja pela falta de acesso a alimentos, seja pela exploração de seus territórios para fins de acumulação capitalista.
Nesse panorama, a tensão entre o discurso humanitário e a necropolítica evidencia os limites da ação internacional no combate à fome. Embora o construtivismo permita entender a forma com que narrativas como a do Papa Leão XIV podem moldar agendas e instituições, a persistência da fome em escala global demonstra que tais discursos nem sempre se traduzem em mudanças estruturais. A necropolítica, por sua vez, revela como a inércia dos Estados e a lógica do mercado perpetuam a vulnerabilidade de certos grupos, mantendo-os em um estado de precariedade que beneficia interesses hegemônicos.
Contudo, a análise dos dados do Observatório de Conflitos e Fome (2025) revela os limites estruturais da intervenção discursiva: apesar da mobilização internacional, o fluxo de alimentos para Gaza aumentou apenas 17% no mês seguinte ao discurso papal, permanecendo 63% abaixo dos níveis pré-conflito. Esse paradoxo ilustra a tensão entre a construção normativa e as realidades necropolíticas: como observa Mbembe (2018), em contextos em que a soberania se exerce precisamente através do controle sobre a vida biológica, os apelos morais frequentemente esbarram em cálculos geopolíticos imutáveis.
Consoante a isso, o discurso do Papa Leão XIV, conforme registrado pelo IFZ (2025), chamou atenção ao propor a criação de “corredores humanitários sob proteção eclesiástica internacional”, mecanismo que buscava transcender as limitações da ação estatal através de uma rede transnacional de atores religiosos. Essa proposta, que combinava elementos da doutrina do “dever de ingerência humanitária” com a noção teológica de “sacralidade da vida”, representou uma tentativa de ressignificar o espaço humanitário como esfera de ação moral autônoma. Seu impacto prático, porém, foi limitado pela recusa das partes em conflito em reconhecer tal iniciativa.
Em suma, o discurso do Papa Leão XIV na FAO, analisado à luz das crises humanitárias hodiernas, configura-se como exemplar da potência e dos limites do construtivismo normativo em contextos necropolíticos. Enquanto sua retórica conseguiu reposicionar a fome induzida como questão central na agenda internacional, sua eficácia transformadora permaneceu limitada pelas estruturas de poder que governam a vida e a morte nas zonas de conflito contemporâneas, pois, como demonstram os dados mais recentes, a fome como arma de guerra persiste precisamente porque opera na interseção entre cálculo estratégico e indiferença moral.
Referências:
ANISTIA INTERNACIONAL. “Gaza 2025: Fome como Estratégia Militar”. Londres: AI, 2025.
CLUSTER DE NUTRIÇÃO DA ONU. “Relatório sobre Insegurança Alimentar em Zonas de Conflito”. Genebra: ONU, 2025.
INSTITUTO DE FÉ E ZELO. “Papa Leão XIV condena uso da fome como arma de guerra em meio à crise humanitária em Gaza”. 2025.
MBEMBE, Achille. “Necropolítica”. São Paulo: n-1 edições, 2018.
OBSERVATÓRIO DE CONFLITOS E FOME. “Monitoramento do Fluxo de Alimentos em Zonas de Guerra”. Haia: OCF, 2025.
SANTA SÉ. Mensagem do Papa Francisco para o Dia Mundial da Alimentação 2025. Vaticano, 30 jun. 2025. Disponível em: https://www.vatican.va/content/leo-xiv/pt/messages/pont-messages/2025/documents/20250630-messaggio-fao.html. Acesso em: 12 jul. 2025 WENDT, Alexander. “Social Theory of International Politics”. Cambridge: CUP, 1999.
