
Ana Beatriz Moreira Pinheiro e Krigor Rodrigo Lüthemeier de Mattos – acadêmicos do 4° semestre de Relações Internacionais da Unama
Há 23 anos, em 2002, o Brasil celebrava sua quinta conquista da Copa do Mundo de futebol. No entanto, após a conquista do pentacampeonato já não se percebia no país o mesmo sentimento de pertencimento à “pátria de chuteiras”, expressão cunhada por Nelson Rodrigues décadas antes para caracterizar uma identidade nacional forjada em torno da seleção brasileira e de seu estilo singular de jogar (COSTA; HELAL, 2022). O que se observa desde então é uma crescente adesão ao modelo europeu de prática esportiva, marcado por pragmatismo, racionalidade tática e lógica mercadológica (CARVALHO, 2001 e 2003 apud GONÇALVES; CARVALHO, 2006).
Historicamente, o futebol brasileiro consolidou-se como uma prática lúdica, centrada no lazer e na diversão, cuja expressão mais simbólica se revela no estilo conhecido como “futebol-arte”. Este modelo exalta atributos como a habilidade individual, o toque refinado de bola e a malícia criativa, qualidades tidas como naturais e quase inatas entre os jogadores brasileiros. Autores como Gilberto Freyre destacaram e louvaram essas características como traços distintivos da brasilidade futebolística, em oposição ao paradigma europeu, sempre voltado à força física, à eficiência técnica, à preparação atlética rigorosa e à disciplina tática (COSTA; HELAL, 2022).
Nas últimas edições da Copa do Mundo, a seleção brasileira enfrentou eliminações marcantes: a fatídica derrota por 7 a 1 diante da Alemanha em 2014, dentro de casa, seguida pela eliminação para a Bélgica na Rússia em 2018 e, mais recentemente, para a Croácia no Qatar em 2022. Esses episódios deixaram feridas abertas que ainda não cicatrizaram completamente e reforçaram a narrativa de que o “futebol-arte” brasileiro precisava se adequar ao modelo europeu se quisesse superá-los em seu próprio jogo (BBC SPORT, 2025).
O panorama contemporâneo do futebol internacional, atravessado pela expansão das dinâmicas mercadológicas, pela centralidade do modelo estético europeu e por um reposicionamento simbólico das formas de jogar, dialoga diretamente com o conceito de colonialidade do poder, elaborado por Aníbal Quijano. Para o autor, a modernidade ocidental não apenas sobreviveu ao fim do colonialismo, como reconfigurou suas estruturas de dominação sob novas formas, articulando raça, capital e saber em um sistema global hierárquico (QUIJANO, 2000). No campo do futebol, essa colonialidade se expressa na forma como o modelo europeu — centrado em disciplina tática, gestão empresarial e produtividade — passou a ser naturalizado como padrão de excelência (COSTA; HELAL, 2022).
A contratação de Carlo Ancelotti para comandar a seleção brasileira, nesse contexto, não deve ser lida apenas como escolha técnica, mas como sintoma de um processo mais profundo de subordinação epistêmica (BBC SPORT, 2025; FORBES, 2025). A ideia de que apenas um técnico europeu poderia “restaurar” a identidade do futebol brasileiro revela a operação silenciosa de um epistemicídio: a supressão de uma tradição própria, marcada pelo improviso, pela criatividade e pelo jogo como expressão cultural (CONEXÕES, 2022). Ao invés de resgatar o espírito da “pátria de chuteiras”, a gestão contemporânea da seleção legitima a visão de que o sucesso esportivo depende da assimilação de lógicas externas, transformando jogadores em ativos e a torcida em clientela (PIZARRO, 2024). Assim como Quijano denuncia a desvalorização dos saberes não europeus nos campos da ciência e da política, o caso da seleção brasileira ilustra como também no futebol as marcas coloniais se mantêm operando, deslocando o Brasil de seu papel simbólico no imaginário global e convertendo sua identidade esportiva em produto adaptado à racionalidade do mercado globalizado.
Diante dos movimentos de subordinação cultural e apagamento simbólico que atravessaram o futebol brasileiro nas últimas décadas, torna‑se urgente um retorno à brasilidade do futebol‑arte, como estratégia de reencontro com nossa identidade esportiva. Um exemplo recente que representa esse resgate simbólico e emocional foi a atuação do Fluminense na semifinal da Copa do Mundo de Clubes da FIFA de 2025. Apesar da derrota para o Chelsea na semifinal da competição, o time jamais demonstrou desconexão com a sua camisa — pelo contrário: vestiu-a com orgulho, dignidade e determinação até o último segundo (THE GUARDIAN, 2025). Esse sentimento foi personificado no depoimento do atacante Jhon Arias após o jogo: em meio às lágrimas, ele pediu desculpas à torcida, dizendo que “dou minha vida por essa camisa” e que “estávamos muito perto… lutamos tanto para chegar aqui” (TERRA, 2025). Arias não expressou frustração vazia, mas sim um orgulho dolorido que ecoa a essência do futebol‑arte: entrega, garra e identidade cultural. Mesmo derrotado, o Fluminense mostrou que vestir verde‑amarelo não é uma abdicação da brasilidade, mas uma afirmação dela em sua forma mais autêntica e resiliente. Esse episódio contrasta com a lógica pragmática que vem se impondo sobre o futebol nacional, muitas vezes justificando derrotas com a necessidade de se adequar a um modelo estético eurocentrado (CONEXÕES, 2022).
Que esse espírito inspire uma reconexão mais ampla com o que de mais original existe no futebol brasileiro — com o toque refinado, a criatividade e a paixão que originaram a “pátria de chuteiras” (PIZARRO, 2024). Afinal, retomar o futebol‑arte não significa recuar, mas reafirmar um legado que resiste ao tempo, às pressões externas e às imposições de um mercado que insiste em transformar arte em produto.
REFERÊNCIAS
BBC SPORT. Can Ancelotti fix Brazil and end World Cup hoodoo? BBC, 12 mai. Disponível em: https://www.bbc.com/sport/football/articles/c8072kvmd23o. Acesso em: 8 jul. 2025.
BRAZIL 2002: THE REAL STORY. Direção: Luis Ara. 2022. 90 min. Documentário.
DA COSTA, Leda Maria; HELAL, Ronaldo. O universo do futebol, a seleção brasileira e a nação: reflexões sobre a ascensão e queda da “pátria de chuteiras”. Conexões, v. 20, p. e022010-e022010, 2022. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/conexoes/article/view/8667716. Acesso em: 7 jul. 2025.
GONÇALVES, Julio Cesar de Santana; CARVALHO, Cristina Amélia. A mercantilização do futebol brasileiro: instrumentos, avanços e resistências. Cadernos EBaPE. BR, v. 4, p. 01-27, 2006. Disponível em: https://www.scielo.br/j/cebape/a/XmxfDtmDMKgKt9M5LzL7KDj. Acesso em: 7 jul. 2025.
KUNTI, Samindra. The Italian Job: Can Carlo Ancelotti Restore Brazil’s Glory? Forbes, 12 maio 2025. Disponível em: https://www.forbes.com/sites/samindrakunti/2025/05/12/the-italian-job-can-carlo-ancelotti-restore-brazils-glory/. Acesso em: 8 jul. 2025.
PIZARRO, Juliano Oliveira et al. Globalização e o sistema-mundo moderno do futebol: modernidade e (de) colonialidade na circulação de atletas a partir dos mundiais FIFA. 2021. Tese (Doutorado em Ciências Humanas) – Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2021. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/229181 . Acesso em: 9 jul. 2025.
QUIJANO, Aníbal et al. Colonialidad del poder, eurocentrismo y América Latina. Buenos Aires: clacso, 2000.
REUTERS. Fluminense embrace underdog role as they prepare to face Chelsea. Reuters, 7 jul. 2025. Disponível em: https://www.reuters.com/sports/soccer/fluminense-embrace-underdog-role-they-prepare-face-chelsea-2025-07-07/ . Acesso em: 8 jul. 2025.
TERRA. Jhon Arias se emociona após derrota do Flu diante do Chelsea no Mundial: ‘Desculpa ao torcedor’. Terra, 8 jul. 2025. Disponível em: https://www.terra.com.br/esportes/futebol/mundialdeclubes/jhon-arias-se-emociona-apos-derrota-do-flu-diante-do-chelsea-no-mundial-desculpa-ao-torcedor,b9bbf440dbca231e75ca523474ed71216ik3utrl.html. Acesso em: 7 jul. 2025.
THE GUARDIAN. FLUMINENSE 0-2 Chelsea: Club World Cup semi-final – as it happened, 8 jul. 2025. Disponível em: https://www.theguardian.com/football/live/2025/jul/08/fluminense-v-chelsea-club-world-cup-semi-final-live. Acesso em: 8 jul. 2025.
