
Manuelle Catunda Gaia, acadêmica do 8° semestre de Relações Internacionais da UNAMA.
O estudo pós-modernista sobre questões alimentares na Amazônia revelam uma contradição central para as Relações Internacionais: o apagamento de saberes tradicionais e a exploração material coexistem como faces do mesmo problema pois, de uma perspectiva pós-moderna, a oposição aparentemente clara entre dois termos não é nem clara nem oposicionista (Devetak, p. 168, 2005). Como afirma Foucault (1977, tradução nossa), “Poder e conhecimento se apoiam mutuamente; eles implicam diretamente um ao outro”, entendimento pós-moderno essencial para compreender como sistemas alimentares amazônidas são simultaneamente marginalizados e instrumentalizados.
Essa relação entre poder e conhecimento, núcleo da crítica desconstrutiva pós-moderna, revela que a questão alimentar na Amazônia não é meramente técnica ou epistemológica, mas disputa por autoridade política. Como destaca Devetak (p. 167, 2005), o pós-modernismo nas Relações Internacionais demonstra que tais questões envolvem lutas para impor interpretações dominantes sobre a legitimidade do que é desenvolvimento ou segurança alimentar. A marginalização dos sistemas tradicionais amazônicos, portanto, não é um acidente, mas resultado de um projeto político que classifica certos saberes como ‘atrasados’, para justificar sua exploração, e outros como ‘legítimos’ para consolidar sistemas dominantes mais lucrativos, como o agronegócio.
Enquanto relatórios oficiais celebram o aumento da disponibilidade de alimentos industrializados, observa-se simultaneamente o declínio acentuado dos sistemas alimentares tradicionais de produção e consumo. Como elucida Almeida: “[…] na Amazônia, se por um lado a fome é invisibilizada (e, por isso, pouco discutida), por outro, ela é fruto da maneira como as corporações nacionais e internacionais a utilizam como fronteira agrícola e como produtora de commodities para o exterior (p. 34, 2019)”.
Enquanto sistemas tradicionais são sistematicamente desmantelados pela dominação do agronegócio, observa-se um movimento de transição compulsório entre alimentos nativos e ultraprocessados, ocorrência que Agamben (1998) chamaria de ‘inclusão excludente’ no sistema alimentar global. Á exemplo, o avanço do agronegócio, que ao ser amparado por flexibilizações legislativas, cria zonas onde a destruição de sistemas tradicionais de subsistência não é vista como violação, mas como exercício legítimo de soberania e desenvolvimento.
É possível observar, nessa transição forçada, ao menos três características, interligadas, que exacerbam a vulnerabilidade desses povos tradicionais: I. o incentivo à mercantilização dos territórios em detrimento das atividades extrativistas; II. as mudanças climáticas, vulnerabilizando ecossistemas tradicionais onde cultivos nativos se tornam inviáveis; e III. a ambiguidade das políticas públicas, que, ao mesmo tempo que garantem renda para compra de alimentos, acabam por reconfigurar as economias locais em redes financeiras dependentes (Mota et al., 2024)”.
Debater alimentação na Amazônia exige, portanto, uma dedicação analítica que ultrapasse as categorias hegemônicas. Superar essa dinâmica demandará não só políticas públicas verdadeiramente representativas, mas também uma transformação nos regimes de saber-poder que hoje governam os corpos e territórios amazônicos, reconhecendo as tradições locais como fontes válidas de conhecimento e organização política.
REFERÊNCIAS
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: Sovereign Power and Bare Life. Translated by Daniel Heller-Roazen. Estados Unidos da América: Stanford University Press-Stanford, 1998.
ALMEIDA, Mário Tito Barros. A dinâmica eco-geopolítica da fome e as relações de poder na governança global da segurança alimentar: a soberania alimentar como resistência. Tese de Doutorado (Programa de Estudos Pós-Graduados em Relações Internacionais) – Instituto de Relações Internacionais, Universidade de Brasília, Brasília, 2019.
DEVETAK, Richard. Theories of International Relations: Third edition. Nova Iorque: Palgrave Macmillan, 2005.
FOUCAULT, Michel. Discipline and Punish: The birth of the prison. Translated from the French by Alan Sheridan. Nova Iorque: Random House, Inc., 1977.
MOTA, D. M. et al. Entre a megadiversidade e a insegurança alimentar na Amazônia Oriental: a alarmante situação do estado do Pará. InterEspaço: Revista de Geografia e Interdisciplinar, Maranhão, v. 10, n. 01, p. 01-28, dezembro de 2024.
