
Railson Silva (acadêmico do 8º semestre de RI da UNAMA)
O idealismo clássico nas Relações Internacionais (RI) representa uma das correntes teóricas mais antigas e influentes na disciplina, caracterizando-se pela crença na possibilidade de uma ordem internacional pacífica e cooperativa, fundamentada em princípios morais, jurídicos e institucionais. Diferentemente do realismo, que enfatiza o poder e o conflito como elementos centrais da política internacional, o idealismo clássico sustenta que a razão, a diplomacia e a construção de instituições multilaterais podem superar a anarquia do sistema internacional (Messari, 2008)
Dentre os precursores do idealismo clássico, destaca-se o Abade de Saint-Pierre (1658-1743), pensador francês cujas obras anteciparam muitos dos debates contemporâneos sobre governança global e pacifismo. Sua proposta mais conhecida, o Projeto para Tornar a Paz Perpétua na Europa (1713), ofereceu uma das primeiras formulações sistemáticas de uma ordem internacional baseada em instituições coletivas de segurança.
O Abade de Saint-Pierre viveu em um período marcado por conflitos constantes na Europa, especialmente as guerras de Luís XIV e a Guerra de Sucessão Espanhola (1701-1714). Diante desse cenário, sua reflexão foi profundamente influenciada pelo Iluminismo emergente, mas também pela profunda influência do pensamento católico. Sua visão de uma Europa unida por instituições pacíficas reflete tanto os ideais iluministas quanto a tradição cristã de concórdia universal, demonstrando como a fé católica moldou suas concepções de justiça, cooperação e governança internacional (Sarfati, 2005).
A principal contribuição de Saint-Pierre reside em seu Projeto para a Paz Perpétua, no qual propôs a criação de uma federação europeia baseada em um pacto de não-agressão e arbitragem compulsória de disputas. Segundo ele, os Estados deveriam renunciar à guerra como instrumento de política externa e submeter-se a uma assembleia permanente composta por representantes de todas as nações. Essa proposta não era apenas política, mas também moral: ele acreditava que os governantes tinham o dever cristão de promover a paz (Saint-Pierre, 2003).
Sua ideia de uma assembleia permanente de nações ecoava a noção católica de bem comum, segundo a qual a autoridade política deve servir não apenas aos interesses de um Estado, mas à harmonia universal. Ao propor que os conflitos fossem resolvidos por meio de tribunais internacionais em vez de guerras, Saint-Pierre aplicava princípios de justiça e mediação inspirados na tradição canônica da Igreja.
Além disso, uma das críticas mais cruciais de Saint-Pierre dirigia-se à doutrina do equilíbrio de poder, então predominante nas relações internacionais europeias. Para ele, o equilíbrio de poder era ineficaz e instável, pois perpetuava ciclos de conflito ao invés de garantir a paz. Assim, em vez de confiar em arranjos de poder temporários entre monarcas, ele defendia um sistema institucionalizado de resolução de conflitos, no qual as disputas seriam resolvidas por meio do direito internacional e da negociação (Saint-Pierre, 2003).
Ele argumentava que os reis, embora soberanos, deveriam submeter-se a uma ordem jurídica superior, refletindo a noção cristã de que toda autoridade provém de Deus e deve ser exercida com responsabilidade.
E apesar de sua visão pioneira, as ideias de Saint-Pierre foram recebidas com ceticismo por seus contemporâneos. Pensadores como Rousseau reconheceram o valor de sua proposta, contudo argumentaram que ela subestimava a natureza conflituosa da política internacional e a dificuldade de os Estados abrirem mão de sua autonomia em prol de uma federação supranacional.
Por fim, as contribuições do Abade de Saint-Pierre ocupa um lugar fundamental na tradição idealista das Relações Internacionais, sendo um dos primeiros a propor um sistema institucionalizado para a manutenção da paz internacional. Sua proposta de paz perpétua não era apenas um arranjo político, mas uma extensão da moral cristã aplicada às relações entre Estados. Ao defender a arbitragem internacional, a limitação ética do poder e a primazia do bem comum, ele antecipou conceitos que seriam retomados tanto pelo direito internacional moderno quanto pelo pensamento social da Igreja.
Referências:
MESSARI, Nizar. Teoria das Relações Internacionais: fundamentos e abordagens. In: CEPIK, Marco A.; MOURÓN, Ricardo (org.). Relações Internacionais: visões do Brasil e da Argentina. Belo Horizonte: PUC Minas, 2008
SARFATI, Gilberto. Teorias de relações internacionais. Revista Data Venia, v. 12, n. 2, 2005.
SAINT-PIERRE, Charles-Irénée Castel de. Projeto para Tornar Perpétua a Paz na Europa; prefácio de Ricardo Seitenfus; tradução de Sérgio Duarte (1°edição no Brasil); Brasília: Editora Universidade de Brasília, Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais; S. Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2003. Disponível em:<https://funag.gov.br/biblioteca-nova/produto/1-999-projeto_para_tornar_perpetua_a_paz_na_europa#:~:text=Descri%C3%A7%C3%A3o:,%C3%BAnica%20garantia%20de%20paz%20perp%C3%A9tua.>
