
Carla Lima (acadêmica do 5º semestre de RI da UNAMA)
Keity Oliveira (Internacionalista formada pela UNAMA)
O neocolonialismo na Amazônia assume, nos dias atuais, formas sofisticadas, porém igualmente violentas, de apropriação dos bens culturais dos povos indígenas. A retirada de artefatos, o uso não autorizado de saberes tradicionais e a comercialização de elementos simbólicos revelam uma continuidade das práticas coloniais sob uma lógica globalizada. Nesse contexto, o roubo do patrimônio cultural deixa de ser um ato isolado e passa a representar uma estratégia sistemática de controle e exploração, reforçando a marginalização desses povos e ameaçando sua identidade e autonomia cultural.
Conforme Mauricio Boivin, Rosato e Arribas (2004, p. 08, tradução nossa), a colonização se caracteriza pelo processo de dominação de um povo sobre o outro, que resulta na desigualdade entre culturas. Durante a expansão imperialista no Novo Mundo e o processo de industrialização, países metropolitanos exerceram domínios “sobre outros povos, sobre outras culturas, sobre outros modos de vida distintos do modo europeu”.
Nessa perspectiva, no período em que a ciência estava se consolidando como um campo autônomo, com foco na objetividade, ela procurou elaborar interpretações sobre os grupos sociais que, à primeira vista, apresentavam diferenças marcantes em relação à sociedade ocidental (Santos, 2018). O processo de colonização também se manifestou por meio da ciência, que passou a construir saberes sobre as sociedades colonizadas com base nos referenciais e no modo de pensar ocidentais.
As teorias científicas, baseadas na noção evolucionista, que colocaram as culturas dominadas em um grau de inferioridade, sustentaram o projeto colonialista com a razão missionária de civilizar, educar esses povos e expandir os territórios, segundo Ferreira (2010). Artefatos dessas sociedades foram sendo coletados, analisados e interpretados com métodos comparativos de valores ocidentais, resultado de uma ciência hegemônica.
Conforme Atalay (2006), enquanto os povos indígenas estavam sendo dizimados por doenças e guerras, antropólogos e arqueólogos estavam coletando vestígios humanos, objetos sagrados ou de uso cotidiano e depositando em museus para administrar a cultura e a história deles. A pilhagem de objetos arqueológicos, segundo Renfrew (2001) foi e, continua sendo, uma prática muito recorrente em países colonizados por grandes nações.
No século XIX, intensificou-se a coleta de vestígios arqueológicos, que frequentemente eram levados para integrar acervos de museus e gabinetes de curiosidades. Esses materiais eram reunidos principalmente por pesquisadores, o que conforme Renfrew (2001), relaciona diretamente esses acervos ao nascimento da arqueologia como uma ciência sistematizada, com métodos próprios.
Ferreira (2010) destaca que, por meio da prática arqueológica, os objetos culturais dos povos da América, em especial o Brasil, foram incorporados aos acervos de museus com o propósito de manter o controle do Estado sobre as populações colonizadas, o que era essencial para sustentar o domínio sociopolítico imperialista.
Durante o colonialismo, as expedições científicas tinham como objetivo mapear territórios e povos anteriores à colonização, ao mesmo tempo em que possibilitavam a coleta de artefatos destinados a estudos ou ao comércio (Santos, 2018). Os museus que recebiam esses objetos culturalmente saqueados, passaram a funcionar como instrumentos de validação dos estados-nação emergentes, os quais buscavam construir um sentido de identidade nacional a partir de um passado idealizado.
Diante disso, os artefatos pertencentes a diversos grupos sociais passaram a ser apropriados, conforme Bruno (1999), como símbolos da nação, com base em uma concepção linear e eurocêntrica da evolução humana.
O tema do repatriamento de artefatos indígenas tem ganhado forças nos últimos anos, em especial junto ao Povo Tupinambá de Olivença, no sul da Bahia. Isso aconteceu devido a um encontro no ano 2000 de duas lideranças deste povo com um manto Tupinambá, durante a Exposição do Redescobrimento do Brasil e abriu caminho para esta luta de trazê-lo de volta para o país.
Em 2022, a questão ganhou dimensões maiores com a notícia de que a Dinamarca iria entregar ao Brasil o artefato do século XVII que está em Copenhagen desde 1689 (Heleno, 2023). O manto, considerado sagrado, é uma das onze peças semelhantes remanescentes e todas as outras se encontram em instituições na Europa, sendo cinco sob a guarda da associação nacional de museus dinamarquesa.
O artefato não foi o único de grande exposição pública a voltar para terras brasileiras. Em 2023, o fóssil Ubirajara jubatus foi símbolo da luta contra a paleopirataria que ocorre em solo nacional (Sputnik Brasil, 2024). Roubado do Brasil em 1995, o fóssil ficou em exposição no Museu Estadual de História Natural da cidade de Karlsruhe, na Alemanha, até 2023, quando a entidade aceitou devolver o material contrabandeado.
Segundo Renata Motta, presidente do Comitê Brasileiro do Conselho Internacional de Museus (ICOM, na sigla em inglês), mais conhecido como ICOM Brasil, o país ocupa o 26º lugar na lista dos países com maior número de objetos culturais roubados e tem uma taxa de recuperação extremamente baixa (Sputnik Brasil, 2024). Entre os gêneros de maior risco estão livros, litografias, documentos, manuscritos, fotografias, mapas, periódicos, artefatos indígenas, fósseis e peças de arte sacra e religiosa.
A cultura marajoara, da Ilha do Marajó, no Pará, é conhecida por seus belos trabalhos cerâmicos e, em especial, suas urnas funerárias em formatos de mulheres grávidas. Muitas dessas urnas, no entanto, estão nas mãos de museus na Europa e nos Estados Unidos, sendo um dos exemplos da continuidade neocolonial em relação ao patrimônio cultural de povos originários.
O tráfico de peças arqueológicas ainda é uma realidade que afeta a maior parte da Amazônia na região paraense. Tal fato pode ser compreendido pelo movimento do colecionismo surgido no século XIX, que visa a aquisição e acumulação de bens de valores artísticos e culturais. Artefatos arqueológicos da Amazônia, sobretudo da cultura Marajoara e Tapajônica, têm grande valor estético, conforme Santos (2018), tornando-se atrativos aos colecionadores voltados para coleta e venda de objetos de culturas tidas como exóticas.
No Brasil há leis voltadas para proteção do patrimônio, como o Decreto-Lei 25 de 1937, artigo 17, que evidencia que os bens tombados não podem ser demolidos, destruídos ou mutilados e os artigos 26, 27 e 28 tratam da comercialização destes bens. Além disso, a Lei nº 3924 de 1961 coloca os bens arqueológicos de qualquer natureza sob a responsabilidade do poder público, no qual o artigo 03 estabelece a proibição de aproveitamento econômico, bem como destruição ou mutilação dos sítios e objetos desta natureza, considerando crime contra o patrimônio, conforme Santos (2018).
A lei também se refere à autorização de realização de escavações com objetivos arqueológicos, concedida por meio do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), o qual é encarregado de estabelecer condições para desenvolver escavações e pesquisas (Santos, 2018). Uma parceria entre Interpol e IPHAN busca realizar uma ampla campanha contra o tráfico ilícito de bens arqueológicos.
Apesar da existência de tais legislações, muitas delas são desconhecidas no Brasil por grande parte dos agentes administrativos. Ademais, o IPHAN tem carência de recursos financeiros, por isso, não consegue responder a todas as demandas das comunidades e às denúncias de exploração irregular de áreas arqueológicas.
No caso da Amazônia, isto corrobora para a impunidade e a carência de fiscalização dos sítios arqueológicos, sendo comum a destruição de sítios por parte dos próprios agentes públicos nesta região, conforme Schaan (2007).
A análise do neocolonialismo amazônico na contemporaneidade revela um processo contínuo e sistemático de espoliação cultural, mascarado por discursos de valorização científica e preservação histórica. O roubo do patrimônio cultural indígena, materializado na retirada, comercialização e exibição de artefatos sagrados e objetos arqueológicos, não é apenas uma herança do colonialismo (Schaan, 2007), mas uma prática ainda ativa que reflete as desigualdades estruturais no tratamento das culturas originárias.
A Amazônia, com sua imensa diversidade étnica e riqueza cultural, continua sendo vista por olhares externos como território de exploração, onde bens simbólicos são extraídos e utilizados para compor narrativas identitárias eurocentradas, especialmente por museus e instituições estrangeiras.
O processo de musealização de objetos indígenas, iniciado com as expedições coloniais, foi incorporado como parte de um projeto mais amplo de apagamento e silenciamento das vozes indígenas. Esses artefatos, arrancados de seus contextos sagrados e comunitários, foram reinterpretados segundo lógicas ocidentais, perdendo sua função social original e sendo ressignificados como meras curiosidades ou objetos de estudo, conforme Silva, (2021).
Tal processo evidencia a permanência de um colonialismo epistêmico que insiste em tratar as culturas indígenas como “outro” a ser compreendido e dominado, em vez de reconhecê-las como sujeitos históricos e protagonistas de suas próprias narrativas.
A carência de recursos, a negligência institucional e o desconhecimento das normas legais contribuem para a manutenção de uma realidade em que o tráfico e a destruição de sítios arqueológicos ocorrem de forma impune. Além disso, a ausência de políticas públicas voltadas à devolução de artefatos e ao fortalecimento do papel das comunidades indígenas na gestão de seus bens culturais limita avanços concretos na superação dessa lógica neocolonial.
Casos recentes de repatriação, como o do manto Tupinambá e do fóssil Ubirajara jubatus, embora simbólicos, expõem tanto a magnitude do problema quanto o potencial das mobilizações indígenas e da cooperação internacional na reversão desse quadro. No entanto, é preciso ir além da recuperação pontual de peças: é necessário repensar toda a estrutura de valorização cultural no país e no mundo, reconhecendo os saberes e patrimônios indígenas como elementos vivos, dinâmicos e inalienáveis, que não podem ser reduzidos a objetos de coleção ou estudo.
Diante disso, torna-se essencial adotar uma perspectiva decolonial, que recoloque os povos indígenas no centro das discussões sobre memória, identidade e pertencimento. Defender o patrimônio cultural amazônico é, sobretudo, defender os direitos humanos, a autodeterminação dos povos e a justiça histórica. A preservação desses bens não é apenas uma questão de conservação material, mas de reconhecimento da diversidade e resistência que sustentam a riqueza civilizatória da Amazônia e do Brasil.
A partir do tema desenvolvido, é importante destacar como o garimpo ilegal tem afetado diretamente sítios arqueológicos e territórios indígenas na região do Tapajós, no Pará. O portal Mongabay Brasil publica uma série de reportagens investigativas que denunciam a destruição de vestígios culturais e a contaminação por mercúrio em comunidades como a dos Munduruku. Os textos revelam como a presença do garimpo ilegal não apenas degrada o meio ambiente, mas também apaga memórias e conhecimentos ancestrais fundamentais para a identidade desses povos. As matérias podem ser acessadas por meio do link a seguir:
< https://brasil.mongabay.com/ >
Ainda nesse contexto, é relevante mencionar os debates contemporâneos sobre a repatriação de acervos indígenas, como o caso da devolução de 585 objetos retidos na França por mais de 20 anos. A cobertura jornalística destaca a articulação entre o Ministério Público Federal, a Funai e representantes indígenas para viabilizar o retorno desses bens culturais ao Brasil. A ação marca um avanço no reconhecimento dos direitos dos povos originários sobre seu patrimônio simbólico e histórico, e reforça a luta contra práticas coloniais de expropriação. Informações detalhadas sobre o processo de repatriação estão disponíveis no portal EcoAmazônia:
Por fim, no campo dos estudos museológicos, a obra “Museus, Coleções e Patrimônios: entre o visível e o invisível”, organizada por Maria Célia Teixeira Moura, reúne textos fundamentais para compreender a lógica colonial por trás da formação de acervos museológicos no Brasil. Os autores abordam como os objetos indígenas foram descontextualizados e transformados em peças exóticas, reforçando discursos eurocêntricos. O livro oferece reflexões críticas sobre a importância da repatriação de bens culturais e a necessidade de uma museologia decolonial. Publicado pela Editora da Universidade Federal da Bahia (EDUFBA), o livro está disponível em diversas bibliotecas acadêmicas e plataformas digitais.
REFERÊNCIAS
ATALAY, Sonya. As indigenous archaeology. American indian quarterly, v. 30, n. 3/4, p. 280-310, 2006.
BOIVIN, Mauricio; ROSATO, Ana; ARRIBAS, Victoria. Constructores de otredad (Introdução). Buenos Aires: Antropofagia, 2004.
BRUNO, Cristina. A musealização da arqueologia. Cadernos de Sociomuseologia, n. 17, p. 35-151, 1999.
FERREIRA, Lúcio. Território primitivo: a institucionalização da arqueologia brasileira. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2010.
HELENO, Haroldo. Repatriar nossos artefatos e demarcar nosso território. Le Monde Diplomatique Brasil. Publicado em: 21 de setembro de 2023. Disponível em: < https://diplomatique.org.br/repatriar-nossos-artefatos-e-demarcar-nosso-territorio/ > Acesso em: 02 de agosto de 2025.
RENFREW, Colin. Loot, legitimacy and ownership: the ethical crisis in archaeology. London: Duckworth, 2001.
SANTOS, Emilly Cristine B. Coleções centrais ou locais? Repatriação no contexto arqueológico da Amazônia. Revista do Instituto Goiano de Pré-História e Antropologia. Habitus. Goiânia, v. 16, n. 2, p. 327-344, jul/dez. 2018. Disponível em: < https://seer.pucgoias.edu.br/index.php/habitus/article/view/6266/3913 > Acesso em: 03 de agosto de 2025.
Silva, Ana Cristina Rocha. Gestão compartilhada do patrimônio arqueológico na Amazônia: conflitos e desafios entre o oficial, o legal e o real. 2021. 490 f. Universidade Federal do Pará, Núcleo de Altos Estudos Amazônicos, Belém, 2021. Disponível em: http://repositorio.ufpa.br:8080/jspui/handle/2011/15018 > Acesso em: 03 de agosto de 2025.
SCHAAN, Denise. Múltiplas vozes, memórias e histórias: por uma gestão compartilhada do patrimônio arqueológico na Amazônia. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, n. 33, p. 109-131, 2007.
SPUTNIK BRASIL. Roubo do patrimônio nacional: confira 5 artefatos brasileiros que estão no exterior. Publicado em: 12 de setembro de 2024. Disponível em: < https://noticiabrasil.net.br/20240912/roubo-do-patrimonio-nacional-confira-5-artefatos-brasileiros-que-estao-no-exterior–36457272.html > Acesso em: 03 de agosto de 2025.
