
Maysa Lisboa, acadêmica do 8º semestre de Relações Internacionais
Cantora, compositora, atriz, apresentadora e empresária, Preta Gil marcou sua trajetória pela ousadia artística e pela atuação política. Sua presença no cenário cultural brasileiro destacou-se pela defesa de um corpo livre, pelos discursos antirracistas, pelo enfrentamento da gordofobia, pela defesa dos direitos LGBTQIAPN+ e por uma sexualidade plural (Vermelho, 2025). Tornou-se uma figura pública que atuava como agente cultural e política, tensionando as normas sociais impostas a corpos racializados, femininos e dissidentes, além de denunciar como o colonialismo perpetua padrões de gênero, raça e corpo até os dias atuais. Assim, mesmo fora das estruturas diplomáticas formais, Preta Gil teve impacto na reconfiguração de imaginários globais sobre o Brasil e seus corpos dissidentes.
Preta Maria Gadelha Gil Moreira nasceu em 8 de agosto de 1974, no Rio de Janeiro. Filha de Gilberto Gil, cresceu cercada por referências culturais potentes da música popular brasileira (MPB), mas construiu uma carreira própria, desafiando padrões estéticos e comportamentais impostos às mulheres negras. Seu álbum de estreia, Prêt-à-Porter (2003), trouxe uma mistura de ritmos populares — como samba, funk e música eletrônica — e abordava temas como sexualidade e empoderamento feminino (LETRASMUS, 2025).
Ao longo dos anos, construiu uma carreira multifacetada. Tornou-se uma das principais figuras do Carnaval carioca desde 2009, onde atuou no teatro, protagonizou programas de televisão e cofundou a Mynd, uma das maiores agências brasileiras de marketing de influência e entretenimento. Como atriz, participou de produções como Caminho das Índias (2009) e Ti Ti Ti (2010), além de filmes como Didi, o Caçador de Tesouros (2006) e Giovanni Improtta (2013). Como apresentadora, esteve à frente de programas como Caixa Preta (2005), Vai e Vem (2010) e o musical TVZ (2023–2024), além de integrar o elenco do Saia Justa (CNN Brasil, 2025).
Autêntica e politizada, sempre usou sua visibilidade nas redes sociais e em espaços públicos para pautar questões estruturais. Defendeu abertamente pautas LGBTQIAPN+ e posicionou-se contra discursos conservadores e discriminatórios, como o racismo estrutural, a gordofobia e a misoginia. Em 2016, enfrentou ataques racistas, denunciando publicamente os agressores e inspirando outras mulheres negras a denunciarem casos de violência racial (CNN Brasil, 2025). Também combateu discursos gordofóbicos e machistas, valorizando a autoestima feminina e o orgulho de possuir uma identidade múltipla — o que a transformou em referência para milhares de pessoas que não se viam representadas nos padrões midiáticos hegemônicos (ISTOÉ Gente, 2025).
Em 2023, Preta Gil foi diagnosticada com câncer no intestino (G1, 2023). Mesmo durante o tratamento, manteve sua voz ativa nas redes sociais e nos espaços públicos, tratando sua doença com a mesma transparência e coragem que marcaram sua vida. Em 2025, faleceu em Nova York, durante tratamento experimental. Sua morte foi amplamente sentida no Brasil e no exterior, com homenagens de artistas, autoridades e do público. Houve velório público no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, cortejo carnavalesco e luto oficial decretado pelo Estado. Seu legado é celebrado como exemplo de liberdade, resiliência, diversidade e afeto (G1, 2025) — valores que também ecoam nas lutas internacionais por justiça de gênero, racial e sexual (Cut, 2025).
A trajetória de Preta Gil pode ser analisada à luz da teoria queer, especialmente através da obra de Cynthia Weber, Queer International Relations: Sovereignty, Sexuality and the Will to Knowledge (2016). Weber argumenta que as relações internacionais são organizadas a partir de normas heteronormativas e binárias que moldam ideias de soberania, identidade e pertencimento. Ao performar uma existência pública não normatizada — negra, bissexual, feminista, popular e fora dos padrões estéticos —, Preta Gil desestabiliza essas categorias, tornando-se um corpo político que desafia os moldes clássicos da cidadania e da representação internacional.
Além disso, a teoria decolonial, na leitura de María Lugones, permite compreender como o gênero, a raça e a sexualidade foram colonizados e continuam sendo usados como ferramentas de controle social e simbólico (Revista Sísifo, 2017). A “colonialidade do gênero”, como propõe Lugones, mostra que o sistema colonial impôs padrões eurocêntricos de um único modo de ser mulher — branca, submissa, heterossexual — criando uma hierarquia entre o humano e o não humano nas relações de poder. A desumanização de mulheres negras, indígenas e dissidentes resulta de uma classificação racial e sexual que não as considera plenamente humanas segundo a lógica patriarcal e colonial. Preta Gil, ao afirmar sua negritude, sua sexualidade e seu corpo como potências políticas, rompe com essa lógica de dominação e recupera sua subjetividade como mulher do Sul Global.
Assim, ao unir as contribuições da teoria queer e da teoria decolonial, é possível compreender que a relevância de Preta Gil para as Relações Internacionais transcende sua atuação artística: seu legado reside na capacidade de reconfigurar os termos do político, do possível e do representável. Sua arte e sua vida desafiaram a naturalização de padrões eurocêntricos, insistindo que a diversidade e o enfrentamento dos preconceitos estruturais são lutas globais e insubstituíveis.
Em memória, sua vida e obra permanecem como instrumentos de transformação política, cultural e social, ampliando os horizontes das teorias internacionais para além do território formal da diplomacia. Preta Gil é — e seguirá sendo — referência de resistência, liberdade e amor. Sua voz continua ecoando nos blocos, nos palcos, nas redes e nos corações de quem sonha com um mundo mais justo, plural e afetivo (G1, 2025).
Referências
CUT. Preta Gil: a voz que transcendeu a arte e se tornou símbolo de transformação. 2025. Disponível em: https://www.cut.org.br/noticias/preta-gil-a-voz-que-transcendeu-a-arte-e-se-tornou-simbolo-de-transformacao-16b9. Acesso em: 03 ago. 2025.
CNN BRASIL. Preta Gil, feminista e bissexual: cantora lutou contra gordofobia e racismo. 2025. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/entretenimento/preta-gil-feminista-e-bissexual-cantora-lutou-contra-gordofobia-e-racismo/. Acesso em: 03 ago. 2025.
G1. Adeus a Preta Gil terá velório aberto no Theatro Municipal e cortejo por circuito batizado em homenagem à cantora. 25 jul. 2025. Disponível em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2025/07/25/adeus-a-preta-gil-tera-velorio-aberto-no-theatro-municipal-e-cortejo-por-circuito-batizado-em-homenagem-a-cantora.ghtml. Acesso em: 03 ago. 2025.
G1. Gilberto Gil homenageia Preta Gil: “Sempre tive orgulho de você, filha, e vou ter pra sempre”. 24 jul. 2025. Disponível em: https://g1.globo.com/pop-arte/noticia/2025/07/24/gilberto-gil-homenageia-preta-gil-sempre-tive-orgulho-de-voce-filha-e-vou-ter-pra-sempre.ghtml. Acesso em: 03 ago. 2025.
G1. Preta Gil é diagnosticada com câncer no intestino. 10 jan. 2023. Disponível em: https://g1.globo.com/pop-arte/musica/noticia/2023/01/10/preta-gil-e-diagnosticada-com-cancer-no-intestino.ghtml. Acesso em: 03 ago. 2025.
ISTOÉ. Do racismo à gordofobia: Preta Gil foi voz de lutas sociais importantes. 2025. Disponível em: https://istoe.com.br/do-racismo-a-gordofobia-preta-gil-foi-voz-de-lutas-sociais-importantes. Acesso em: 03 ago. 2025.
LETRASMUS. Biografia de Preta Gil. 2025. Disponível em: https://www.letras.mus.br/blog/biografia-de-preta-gil/. Acesso em: 01 ago. 2025.
LUGONES, M. Colonialidade e gênero. Revista Estudos Feministas, v. 16, n. 2, p. 511–518, 2008. Disponível em: https://cpdel.ifcs.ufrj.br/wp-content/uploads/2020/10/Maria-Lugones-Colonialidade-e-genero.pdf. Acesso em: 03 ago. 2025.
REVISTA SÍSIFO. Lugones contra a modernidade: pela descolonização do gênero. 2017. Disponível em: https://www.revistasisifo.com/2017/11/lugones-contra-modernidade-pela.html. Acesso em: 03 ago. 2025.
REVISTA QUEM. Preta Gil. 2025. Disponível em: https://revistaquem.globo.com/famoso/preta-gil/. Acesso em: 03 ago. 2025.
VERMELHO. Preta Gil: uma mulher que fez de seu corpo um instrumento de luta. 21 jul. 2025. Disponível em: https://vermelho.org.br/2025/07/21/preta-gil-uma-mulher-que-fez-de-seu-corpo-um-instrumento-de-luta/. Acesso em: 03 ago. 2025.
WEBER, C. Queer International Relations: Sovereignty, Sexuality and the Will to Knowledge. Oxford: Oxford University Press, 2016.
