
Thaís Carvalho e Tayse Santana, acadêmicas do 8º semestre de Relações Internacionais.
Ficha Técnica:
Ano: 2023
Diretor: Ryusuke Hamaguchi
Distribuição: Imovision
Gênero: Drama
País de Origem: Japão
O filme japonês O Mal Não Existe, do renomado diretor Ryusuke Hamaguchi, marca o seu retorno às telas após o sucesso de “Drive My Car”, filme vencedor do Oscar 2022 de Melhor Filme Internacional. O longa se apresenta como um slow cinema sobre o cotidiano de Takumi (Hitoshi Omika), um homem viúvo que vive com sua filha Hana (Ryo Nishikawa) em Mizubiki, uma vila próxima a Tóquio. Ao longo de uma hora e quarenta e seis minutos, Hamaguchi explora a relação entre o ser humano e a natureza, contrapondo dois mundos em tensão: a vida rural equilibrada e a ganância capitalista sobre a natureza (Colleti, 2024).
O primeiro ato da película apresenta a rotina dos personagens retratada com minúcia e paciência, utilizando-se principalmente da figura de Takumi e seu trabalho como “faz-tudo” na vila, explorando em longos takes as atividades simples, feitas na comunidade, como cortar lenha ou coletar água em um riacho. O diretor utiliza essa abordagem lenta não apenas para evidenciar a conexão harmônica entre os habitantes e o ambiente que os cerca, mas também para estabelecer um ritmo que convida o espectador a sentir a serenidade do espaço natural, em contraste com a rotina caótica de cidades japonesas como Tóquio.
Porém, a calmaria do dia a dia de Takumi e dos moradores da comunidade é ameaçada quando representantes de uma empresa de Tóquio chegam à vila com a proposta de construir um empreendimento de camping de luxo, em meio à floresta local. Nesse sentido, é na reunião entre os empresários e os moradores da comunidade que se evidencia o momento de tensão na dinâmica existente, pois ao longo das discussões, os moradores expõem as implicações ambientais de um projeto aparentemente inofensivo.
Isto posto, a narrativa do longa-metragem vai construindo uma reflexão simbólica sobre o choque entre a lógica do desenvolvimento econômico e a preservação da vida comunitária e da sustentabilidade ecológica, expondo a relação predatória que muitas vezes marca as iniciativas corporativas. Ainda assim, O Mal Não Existe evita um tratamento maniqueísta, entre o bem e o mal, haja vista que num primeiro momento, até mesmo os representantes da empresa – que parecem encarnar a corrupção moral do capitalismo-, gradualmente são humanizados, revelando suas inseguranças, frustrações e a busca por sentido, o que confere uma ambiguidade ao conflito central entre a empresa e a comunidade.
O longa, de maneira geral, denuncia os malefícios do capitalismo moderno, e como grandes corporações utilizam uma espécie de “maquiagem” se disfarçando de sustentáveis, para que prosperem de lucros imediatos e inconsequentes (Cunha, 2024). Assim sendo, o filme japonês pode ser interpretado a partir da teoria marxista de Relações Internacionais, visto que ele trata de questões estruturais, ligadas ao capitalismo, exploração da natureza e desigualdades sociais.
A Teoria Marxista de Relações Internacionais parte dos pressupostos do pensamento de Karl Marx e do marxismo em geral, aplicando-os ao campo internacional. O Marxismo é uma abordagem crítica que questiona as teorias tradicionais amplamente difundidas nas Relações Internacionais (Bueno, 2024). Ela busca compreender as dinâmicas globais a partir das relações de produção, da luta de classes e do papel do capitalismo no sistema mundial. Diferente das abordagens tradicionais como o realismo (que foca no Estado e no poder) e o liberalismo (que enfatiza cooperação e instituições), a perspectiva Marxista analisa como o capitalismo estrutura as relações internacionais.
Para o Marxismo, os atores principais não são os Estados ou indivíduos, mas classes sociais, movimentos sociais e o mercado. Para explicar os processos das Relações Internacionais, as ideias de comunistas e revolucionários do início do século XX, como Rosa Luxemburg, Rudolf Hilferding e Vladimir Lenin, foram extremamente importantes, visto que os mesmos desenvolveram as teorias clássicas do imperialismo, mostrando como a expansão capitalista gera guerras e dominações coloniais (Bueno, 2024).
Em 1974, Immanuel Wallerstein criou a teoria do sistema-mundo, analisando o capitalismo como um sistema global estruturado em centro-periferia, destacando a interdependência e desigualdade entre os estados centrais, semiperiféricos e periféricos (Bueno, 2024). Por fim, Antonio Gramsci introduziu a noção de hegemonia, útil para explicar como certos Estados exercem liderança mundial não apenas pela força, mas pelo consenso cultural e ideológico.
O filme pode ser interpretado a partir da lente marxista, pois retrata em escala local como o capitalismo estrutura as relações sociais e ambientais, evidenciando dinâmicas que a teoria explica em âmbito internacional. A instalação de um empreendimento turístico de luxo em uma comunidade rural japonesa mostra a disputa entre classes (os investidores urbanos, representantes do capital, e os moradores locais, representantes do trabalho e da vida comunitária), refletindo a lógica da expansão capitalista e do imperialismo econômico descritos por Lenin e Luxemburg.
A relação de centro e periferia, desenvolvida por Wallerstein, também se evidencia, já que a comunidade é colocada em posição subordinada, tratada como uma “periferia interna”, servindo aos interesses do “centro”, sendo este os grandes investidores urbanos e internacionais do mercado global, subordinando o rural ao urbano. Além disso, a tentativa dos investidores de legitimar o projeto como desenvolvimento econômico ilustra a noção gramsciana de hegemonia, em que o consenso ideológico serve para manter a dominação.
Assim, a narrativa, ao mostrar a vida de uma comunidade rural no Japão ameaçada pela instalação de um glamping, financiado por investidores urbanos, e como a população local enfrenta a possibilidade de ver seu modo de vida tradicional e sua relação com a natureza destruídos em nome do lucro e da lógica capitalista, materializa, no campo cultural e ambiental, os principais conceitos do marxismo em Relações Internacionais, conectando a luta local às contradições estruturais do sistema mundial capitalista.
REFERÊNCIAS:
Bueno, Guilherme. Marxismo nas Relações Internacionais: Resumo e Guia de Estudos 2024. ESRI, 2024. Disponível em: https://esri.net.br/marxismo-nas-relacoes-internacionais-guia/#:~:text=O%20marxismo%20oferece%20uma%20lente,e%20sociedade%20no%20cen%C3%A1rio%20global. Acesso em: 25 ago. 2025.
Coletti, Caio. O Mal Não Existe faz fábula contemporânea sombria e bem cronometrada. Omelete, 2024. Disponível em:https://www.omelete.com.br/filmes/criticas/o-mal-nao-existe-hamaguchi. Acesso em: 25 ago. 2025.
Cunha, Alex. “O Mal Não Existe” e um cinema para adiar o fim do mundo. OGrito, 2024. Disponível em: https://revistaogrito.com/o-mal-nao-existe-critica/#:~:text=de%20introspec%C3%A7%C3%A3o%20cinematogr%C3%A1fica.-,Sem%20f%C3%B3rmulas%20f%C3%A1ceis%2C%20a%20obra%20denuncia%20a%20toxicidade%20do%20capitalismo,enigm%C3%A1ticos%20e%20carregados%20de%20alegorias. Acesso em: 26 ago. 2025
