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Railson Silva (acadêmico do 8º semestre de RI da UNAMA)

O vasto campo das Relações Internacionais (RI), tal como institucionalizado no século XX, tem sido amplamente caracterizado como uma disciplina de origem e predominância ocidental. As Grandes Teorias como o realismo, liberalismo e construtivismo, que formam o núcleo dos currículos acadêmicos em grande parte do mundo, emergiram de um contexto histórico e intelectual específico: o sistema estadual europeu pós-Westphalia e, posteriormente, a experiência anglo-americana do pós-Segunda Guerra Mundial e da Guerra Fria.

Este cânone teórico, no entanto, frequentemente apresenta-se como universal, oferecendo explicações pretensamente objetivas e abrangentes para um sistema internacional que é, em si mesmo, profundamente diverso. Nas últimas décadas, este monopólio epistêmico tem sido desafiado por um corpus crescente de pesquisadores que questiona a adequação e a legitimidade de um paradigma ocidental-cêntrico para analisar um mundo não-ocidental e multipolar.

O ponto de partida para o florescimento das teorias não-ocidentais é uma crítica consolidada ao eurocentrismo inerente às RI. Estudiosos como John Hobson e Arlene B. Tickner argumentam que a disciplina operou uma “Grande Divisão” entre um Ocidente racional, moderno e produtor de teoria, e um “Resto” não-ocidental, visto como objeto passivo de estudo, atrasado ou irracional (Hobson, 2012). Este gesto epistêmico não apenas excluiu outras vozes, mas também naturalizou conceitos como anarquia, soberania e o próprio Estado-nação como os únicos prismas válidos para se analisar o mundo.

O conceito de “teorias não-ocidentais” ganhou maior visibilidade nos anos 2000, sobretudo a partir da obra organizada por Acharya e Buzan (2010), que buscou mapear como diferentes regiões do mundo produzem interpretações próprias da política internacional. Para os autores, não se trata apenas de “regionalizar” as RI, mas de incluir epistemologias alternativas capazes de ampliar a compreensão do sistema internacional.

Sob essa ótica, as teorias não-ocidentais não rejeitam necessariamente o diálogo com as correntes clássicas, mas reivindicam a valorização de contextos históricos distintos. Como argumenta Tickner (2003), a disciplina deve reconhecer que experiências coloniais, dinâmicas de dependência econômica e processos de resistência cultural transformaram identidades políticas e sociais de maneira singular em diferentes regiões do globo.

Na Ásia, destacam-se contribuições oriundas da China e da Índia. O pensamento chinês, por exemplo, vem sendo resgatado a partir de tradições como o confucionismo, o taoismo e as experiências históricas de dinastias imperiais. Qin Yaqing (2016) defende que a noção de relacionalidade, central no pensamento confucionista, permite compreender as interações internacionais não apenas em termos de poder, mas de harmonização e equilíbrio. Essa abordagem contrasta com a lógica predominante no realismo ocidental.

Na Índia, há uma valorização de conceitos como “não-alinhamento” e “civilização plural”, refletindo a trajetória histórica do país e sua busca por autonomia no cenário internacional. 

O continente africano também tem buscado elaborar contribuições próprias, ancoradas em tradições comunitárias e experiências coloniais. A filosofia do Ubuntu, por exemplo, sugere que as relações internacionais podem ser interpretadas a partir da interconexão entre indivíduos e comunidades, sustentando uma ética da solidariedade e da reciprocidade (Ndlovu-Gatsheni, 2015). Tal visão contrapõe-se à ênfase ocidental na competição interestatal, colocando a cooperação como fundamento da ordem política.

A América Latina, por sua vez, contribuiu para as RI com teorias como a dependência e a autonomia. Autores como Cardoso e Faletto (1979) argumentaram que as estruturas de dependência econômica explicam a posição periférica da região no sistema internacional. Com base nesse olhar, após isso, pensadores começaram a defender a busca por autonomia como princípio estratégico para países em desenvolvimento, ressaltando a necessidade de políticas externas que reduzam vulnerabilidades estruturais.

Mais recentemente, a perspectiva decolonial tem ganhado destaque, ao questionar não apenas as relações materiais de poder, mas também os padrões de conhecimento. Para Quijano (2000), a colonialidade do saber reforça hierarquias epistêmicas que precisam ser desconstruídas para que uma visão verdadeiramente global das RI possa emergir.

Em suma, apesar dos avanços, as teorias não-ocidentais enfrentam desafios, como a dificuldade de institucionalização em centros acadêmicos dominados pelo mainstream. Ademais, a própria categorização de “não-ocidental” pode reforçar uma divisão binária, obscurecendo diálogos e interconexões entre diferentes tradições. Ainda assim, sua contribuição é fundamental para a construção de uma disciplina mais plural. Como destaca Tickner e Blaney (2012), o objetivo não é substituir as teorias ocidentais, mas criar um campo verdadeiramente dialogal, no qual múltiplas vozes tenham legitimidade.

Referências: 

ACHARYA, Amitav; BUZAN, Barry (orgs.). Non-Western International Relations Theory: Perspectives On and Beyond Asia. New York: Routledge, 2010.

CARDOSO, Fernando Henrique; FALETTO, Enzo. Dependência e Desenvolvimento na América Latina. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.

HOBSON, J. M. The Eurocentric Conception of World Politics: Western International Theory, 1760–2010. Cambridge: Cambridge University Press, 2012.

NDLOVU-GATSHENI, Sabelo J. Decoloniality as the Future of Africa. History Compass, v. 13, n. 10, p. 485-496, 2015.

TICKNER, Arlene B. Seeing IR Differently: Notes from the Third World. Millennium, v. 32, n. 2, p. 295-324, 2003.

TICKNER, Arlene B.; BLANEY, David L. Thinking International Relations Differently. New York: Routledge, 2012.

QIN, Yaqing. A Relational Theory of World Politics. International Studies Review, v. 18, n. 1, p. 33-47, 2016.

QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del poder, eurocentrismo y América Latina. In: LANDER, Edgardo (org.). La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales. Buenos Aires: CLACSO, 2000.