
Keity Silva de Oliveira – Internacionalista formada pela UNAMA
Durante as últimas décadas, o cenário de atuação das Relações Internacionais vem sendo transformado devido às novas dinâmicas da sociedade internacional, tendo entre elas, o surgimento de novos atores nesse cenário, ou seja, os Estados já não são os únicos atores que protagonizam o palco internacional.
Diante disso, urge a necessidade de que as abordagens das RI, antes sendo dominantemente masculinas, sejam atualizadas e reestruturadas sob a ótica do gênero e da mulher como participante ativa do sistema. Logo, as novas abordagens foram responsáveis por abrir espaços na formulação do corpo teórico para a aplicação do gênero como uma categoria de análise.
A investigação do estudo de gênero no âmbito das Relações Internacionais teve destaque no final da década de 1980, no contexto do chamado “terceiro debate” das Relações Internacionais, entre os positivistas e os pós-positivistas, que foram os responsáveis pela ruptura com as formas de construção de conhecimento anteriores da área (Monte, 2013), que não possuíam interesse em incluir em suas análises, as variáveis relacionadas com os novos atores que impactam nos fenômenos internacionais.
A partir disso, a teoria feminista nas RI conta com teóricas que buscam apresentar novas perspectivas de gênero para análise, fornecendo novos rumos para uma maior participação das mulheres no cenário internacional.
Nesse seguimento, Cynthia Enloe (1938) é um marco para os estudos de Relações Internacionais, sendo considerada uma das principais teóricas feministas da área, conhecida por seu trabalho sobre gênero e militarismo e tendo contribuído para a construção de uma comunidade acadêmica feminista mais inclusiva.
Entre suas principais publicações estão: “Bananas, Beaches and Bases” (1989); “Maneuvers: The International Politics of Militarizing Women’s Lives” (2000); “The Big Push: Exposing and Challeging the Persistence of Patriarchy” (2017); e “Nimo’s War, Emma’s War: Making Feminist Sense of the Iraq War” (2010).
Em “Bananas, Beaches and Bases” (1989), um dos seus trabalhos mais notórios, a autora questiona onde estão as mulheres na política internacional. Desta forma, expondo a dominância da masculinidade moldada nas relações de poder (Mendonça, 2015), reforçando assim, o controle político através da perpetuação do poder de gênero e excluindo a visão feminina sobre o mundo, dificultando o gênero de se firmar como um ator no sistema internacional.
Para a autora, é importante observar as mulheres em suas mais diversas atividades, em todos os lugares do mundo, para compreensão de como a política internacional se manifesta de maneira masculinizada. Enloe busca conhecer e entender o contexto social de mulheres refugiadas, trabalhadoras, secretárias de políticos e diplomatas, faxineiras, camareiras, militares e mulheres em situação de prostituição trabalhando próximas às bases militares, questionando-se de que maneira essas mulheres estão influenciando na política internacional, e de que forma os estereótipos de gênero que se manifestam na propaganda, no cinema e nas mídias, são utilizados por governos para influenciar ou exercer poder no meio internacional.
Além de trazer esse questionamento, a teórica traz um novo significado de militarização, ao analisar a relação deste conceito com a vida das mulheres. Em que o conceito é concebido como um conjunto de ideias masculinizantes que estão entrelaçadas na sociedade, e que ao se militarizar determinada pauta ela se torna masculinizada, conforme elucidado por Monteiro & Zucatto (2020).
Dessa maneira, a autora explica que isso acontece devido a ideia do “homem protetor” e da “mulher protegida”, ideias que estão na base das relações sociais e da concepção de um Estado Nação. Logo, o exército é uma confirmação da masculinidade e de cidadania, o que gera questões identitárias com a entrada de mulheres nesse campo e consequentemente, o apagamento delas nesses espaços.
Em um segundo plano, Enloe aprofunda o debate sobre mulheres e o campo da militar na obra “Maneuvers: The International Politics for Militarizing Women’s Lives” (2000), no qual a autora defende que a militarização é um processo amplo, complexo e contínuo, que ultrapassa o campo de batalha e se infiltra nas estruturas sociais, econômicas, culturais e políticas, afetando as mulheres em diferentes papéis, e frequentemente sem que elas se deem conta disso.
O livro é estruturado em capítulos que exploram diferentes arenas onde a militarização atua: desde objetos aparentemente banais, como uma lata de sopa ou brinquedos infantis, até contextos mais dramáticos como o estupro sistemático em conflitos armados. Um dos capítulos mais impactantes é “When Soldiers Rape”, onde Enloe mostra como a violência sexual praticada por militares está enraizada em estruturas de poder e impunidade, sendo perpetuada por instituições que raramente responsabilizam os agressores.
Uma das grandes contribuições da obra é expandir a compreensão do que significa “militarizar”. Para Enloe, não se trata apenas de vestir uniformes ou empunhar armas, mas de internalizar lógicas militares em decisões políticas, normas de gênero, símbolos culturais e rotinas cotidianas.
Outrossim, Enloe oferece uma análise crítica do papel das mulheres nos próprios sistemas militares. Ela não apenas examina a presença feminina nas Forças Armadas, mas questiona de que forma essa inclusão está condicionada por valores patriarcais e por estratégias institucionais que buscam legitimar o poder militar sem necessariamente desafiá-lo. A autora também propõe reflexões incômodas ao movimento feminista, apontando que nem toda luta por igualdade dentro das instituições militares contribui para a desmilitarização da vida social – em alguns casos, pode até reforçá-la.
Portanto, a trajetória de Cynthia Enloe representa uma virada fundamental na maneira como se analisa as Relações Internacionais e os processos de militarização a partir de uma perspectiva feminista. Ao deslocar o olhar dos espaços tradicionalmente analisados, como conflitos, diplomacia ou grandes decisões políticas para os âmbitos cotidianos, culturais e afetivos, Enloe revela como o poder militar e as estruturas internacionalistas dependem da construção e manutenção de papéis de gênero específicos.
Neste sentido, as lentes analíticas de Enloe oferecem não apenas uma crítica às estruturas globais dominantes, mas também um chamado à ação, pessoal, política e teórica. Repensar o mundo a partir das margens, das experiências invisibilizadas e das escolhas cotidianas é um exercício indispensável para qualquer projeto de transformação social que se pretenda verdadeiramente democrático, igualitário e antimilitarista.
REFERÊNCIAS
ENLOE, Cynthia. Bananas, Beaches and Bases: Making Feminist Sense of International Politics. 1989.
ENLOE, Cynthia. Maneuvers: The International Politics of Militarizing Women’s Lives. 2000.
MONTE, Isadora Xavier do. O debate e os debates: abordagens feministas para as relações internacionais. IN. Estudos Feministas, Florianópolis, 21, 2013. Disponível em: < https://www.jstor.org/stable/24328035?read-now=1&seq=1#metadata_info_tab_contents > Acesso em: 13 de setembro de 2025.
MONTEIRO, Giovanna Lucio; ZUCATTO, Giovana Esther. Uma entrevista com Cynthia Enloe: conjuntura internacional e futuro da pesquisa feminina. Observatório Feminista de Relações Internacionais, 2020 – OFRI. Disponível em: < https://ofri.com.br/uma-entrevista-com-cynthia-enloe/ > . Acesso em: 13 de setembro de 2025.
