Sofia Dias, acadêmica do 2º semestre de Relações Internacionais da UNAMA.

O Brasil, nas últimas décadas, vivenciou avanços e retrocessos no combate à fome. Em 2014, o país saiu oficialmente do Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO), resultado de políticas públicas de transferência de renda, fortalecimento da agricultura familiar e ampliação da rede de segurança alimentar.

Entretanto, em 2022, a insegurança alimentar voltou a atingir proporções alarmantes: mais da metade da população brasileira relatava dificuldades para garantir a alimentação cotidiana, e 33 milhões de pessoas estavam em situação grave de fome (REDE PENSSAN, 2022). Esse quadro evidencia a fragilidade estrutural das políticas alimentares no país e aponta a necessidade de repensar o significado do Mapa da Fome, compreendendo seus limites interpretativos.

O Mapa da Fome identifica como críticos os países onde mais de 5% da população vive em insegurança alimentar crônica. Embora relevante, esse indicador não captura a totalidade do fenômeno, pois deixa de fora dimensões como a má nutrição, a qualidade dos alimentos consumidos e as desigualdades de acesso.

Josué de Castro já havia advertido, em Geografia da Fome (1946), que “a fome é um fenômeno biológico, mas de causas sociais” (CASTRO, 2022, p. 646), destacando que não se trata apenas de ausência de alimentos, mas de uma questão profundamente enraizada nas estruturas políticas e econômicas. Assim, a saída do Brasil do Mapa da Fome, embora representativa, não significou a erradicação da fome em sua complexidade.

A análise histórica é fundamental para compreender a persistência desse problema. Castro demonstrou que a fome no Brasil não decorre de fatalidades naturais, mas de escolhas políticas e sociais. Sua divisão entre “áreas de fome epidêmica”, como o sertão nordestino, e “áreas de fome endêmica”, como a Amazônia e o Nordeste açucareiro, evidenciava que em certas regiões a escassez era momentânea e em outras era estrutural e permanente, “causada por relações sociais que a produz[em]” (CASTRO, 2022, p. 644). Para ele, a solução passava pela transformação agrária e pelo combate às desigualdades, considerados um “imperativo nacional” (CASTRO, 2022, p. 646).

Décadas mais tarde, Herbert de Souza, o Betinho, retomou essa luta em outro registro. À frente da Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida, mobilizou a sociedade civil em 1993 e chamou atenção para a urgência do tema ao afirmar que “quem tem fome, tem pressa” (SOUZA, 1993, p. 12).

Sua atuação ampliou a consciência pública sobre a fome como violação de direitos humanos e pressionou o Estado a adotar medidas emergenciais e estruturais. Essa articulação entre mobilização popular e políticas institucionais se concretizou nos anos 2000, com programas como o Fome Zero e o Bolsa Família, que contribuíram para a saída do Brasil do Mapa da Fome.

Na atualidade, os estudos da Rede PENSSAN reforçam a necessidade de indicadores mais abrangentes para além das métricas internacionais. O Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar revela que a fome se distribui de forma desigual no país, atingindo com mais intensidade as populações negras, indígenas, periféricas e rurais. Tal diagnóstico dialoga com a leitura de Castro, ao evidenciar que a fome é “produzida socialmente e politicamente pelas decisões humanas de não permitir que uma parcela significativa da população acesse os alimentos necessários” (CASTRO, 2022, p. 644), e reafirma o sentido ético-político da ação de Betinho.

Além disso, é necessário ampliar a análise para considerar que a má nutrição não se expressa apenas na ausência de alimentos, mas também na predominância de dietas pobres em qualidade. O relatório global Alimentando o Lucro: Como os ambientes alimentares estão falhando com as crianças (UNICEF, 2025) demonstra que milhões de crianças e adolescentes crescem em ambientes saturados por alimentos ultraprocessados, bebidas açucaradas e fast foods, o que leva ao aumento do sobrepeso e da obesidade, inclusive em países que ainda enfrentam a desnutrição.

Essa tendência revela uma mudança histórica: a obesidade já superou a desnutrição como a forma mais prevalente de má nutrição em jovens de 5 a 19 anos. Ao dialogar com as reflexões de Josué de Castro, percebe-se que sua crítica à fome como fenômeno “biológico de causas sociais” mantém-se atual — se antes o desafio era o acesso insuficiente, hoje soma-se a ele o acesso desigual e prejudicial a alimentos de baixa qualidade.

Nesse sentido, o processo de enfrentamento da fome no Brasil precisa considerar tanto a erradicação da insegurança alimentar grave quanto a transformação estrutural dos ambientes alimentares, de modo a assegurar dietas saudáveis e sustentáveis para toda a população.

Portanto, sair do Mapa da Fome deve ser entendido como um marco, mas não como ponto de chegada. O desafio contemporâneo é garantir a segurança alimentar e nutricional de forma sustentável, articulando políticas públicas permanentes, fortalecimento da agricultura familiar, democratização do acesso à terra e inclusão social por meio de renda e trabalho digno. Além disso, é imprescindível enfrentar as desigualdades raciais, de gênero e territoriais que aprofundam a exclusão alimentar.

É na Amazônia que esse desafio precisa ser enfrentado de maneira decidida.

REFERÊNCIAS

CASTRO, Josué de. Geografia da fome. São Paulo: Todavia, 2022. Disponível em: https://files.cercomp.ufg.br/weby/up/473/o/CASTRO__Josu%C3%A9_de_-_Geografia_da_Fome.pdf. Acesso em: 10 set. 2025

REDE BRASILEIRA DE PESQUISA EM SOBERANIA E SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL – Rede PENSSAN. II Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da COVID-19 no Brasil. São Paulo: Rede PENSSAN, 2022. Disponível em: https://pesquisassan.net.br/olheparaafome/. Acesso em: 10 set. 2025.

SOUZA, Herbert de. Quem tem fome, tem pressa. Rio de Janeiro: Ação da Cidadania, 1993. Disponível em: https://www.acordacultura.org.br/quem-tem-fome-tem-pressa-herbert-de-souza-betinho/. Acesso em: 10 set. 2025.

UNICEF. Alimentando o lucro: como os ambientes alimentares estão falhando com as crianças: Relatório Sobre a Nutrição Infantil, 2025: Resumo do Relatório. Nova Iorque: UNICEF, set. 2025.