
Thaís Roberta Carvalho – acadêmica do 8º semestre de Relações Internacionais da Unama
Em setembro de 2025, dezenas de mulheres sul-coreanas que foram submetidas à exploração sexual ingressaram com uma ação judicial contra o Exército dos Estados Unidos. As demandantes acusam a instituição de ter incentivado diretamente o comércio sexual nas proximidades de bases militares na Coreia do Sul, além de terem sido mantidas em regime de confinamento forçado para o tratamento compulsório de infecções sexualmente transmissíveis (Choe, 2025).
Segundo Paredes (2025), as vítimas exigem que o Exército norte-americano ofereça uma indenização no valor de dez milhões de wons (cerca de trinta e sete mil reais), além de um pedido oficial de desculpas. As reivindicações estão fundamentadas na acusação de que a instituição colaborou com a ampla rede de prostituição estabelecida na região, bem como na responsabilização por episódios recorrentes de violência sexual e física cometidos por soldados norte-americanos contra trabalhadoras de bares e bordéis, configurando graves violações aos direitos humanos.
Foi apenas em 2022 que o Tribunal Superior da Coreia do Sul reconheceu que o Estado sul-coreano havia “estabelecido, administrado e operado” ilegalmente diversos bordéis nas proximidades das bases militares norte-americanas, com o objetivo de atender às demandas sexuais dos soldados. Diante disso, a Corte determinou o pagamento de indenizações por danos psicológicos a mais de cem vítimas envolvidas no sistema de exploração (Le Monde, 2025).
Os Kijichon (기지촌), também conhecidos como camptowns, eram vilarejos e áreas urbanas localizadas nas proximidades das bases militares dos Estados Unidos no território sul-coreano. Essas regiões eram estruturadas para oferecer lazer, entretenimento e serviços aos militares estrangeiros, com bares, casas noturnas e bordéis voltados para atender às demandas dos soldados americanos, facilitadas pelo próprio governo local. Segundo Kitamura (2025), a origem dessas áreas remonta ao período posterior à Guerra da Coreia, encerrada em 1953, com a assinatura do armistício, onde os Estados Unidos desempenharam um papel central na criação da Zona Desmilitarizada da Coreia (DMZ), que consolidou a divisão definitiva entre as Coreias.
O Tratado de Defesa Mútua entre os Estados Unidos e a Coreia do Sul, em 1953, permitiu que diversas bases militares norte-americanas fossem estacionadas ao redor da Zona Desmilitarizada, sob o pretexto de proteção e apoio à reconstrução social, política e econômica do país, com o estado sul-coreano criando condições e até mesmo apoiando a presença americana no território, o que proporcionou uma “militarização maciça” do país (Kitamura, 2025).
Ao redor das bases militares, formaram-se os Kijichon como uma estratégia para impulsionar a economia local, sobretudo por meio da entrada de divisas estrangeiras, e para atender às chamadas “necessidades” dos militares norte-americanos. No entanto, em 1969, diante do anúncio do então presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon, sobre seu plano de reduzir ou até mesmo retirar tropas americanas de países asiáticos, incluindo a Coreia do Sul, o governo sul-coreano adotou medidas emergenciais para impedir as retiradas.
Essas ações visavam responder às preocupações das forças armadas norte-americanas instaladas no território, buscando assegurar, por mais tempo, o apoio econômico e militar proporcionado pelos Estados Unidos. Assim, com o intuito de garantir a permanência das tropas estadunidenses em solo sul-coreano, o governo utilizou os corpos das mulheres como instrumento de política estatal e passou a atender às principais demandas americanas em relação aos bordéis administrados localmente.
Entre essas preocupações, destacava-se o controle da disseminação de infecções sexualmente transmissíveis entre os soldados. Nesse contexto, o então presidente, Park Chung Hee, determinou a formulação e implementação de políticas de “purificação” direcionadas às mulheres dos Kijichon (Kitamura, 2025).
Vale evidenciar que a maioria das mulheres que atuavam nessa região haviam sido vendidas a intermediários de bordéis ou enganadas por falsas promessas de emprego. Ao chegarem ao destino, no entanto, eram forçadas à prostituição e, em muitos casos, contraíam dívidas que as mantinham em condições de escravidão sexual frente aos soldados norte-americanos, com a conivência e supervisão do Estado sul-coreano (Paredes, 2025).
De acordo com Choe (2025), os tratamentos de “purificação” conduzidos pelo Estado eram sistemáticos e violentos. As mulheres eram submetidas a exames duas vezes por semana, e aquelas que testavam positivo eram confinadas em quartos com grades e medicadas com altas doses de penicilina, o que, em muitos casos, provocava reações adversas graves, incluindo mortes por choque anafilático. Os custos desses procedimentos eram arcados pelas próprias vítimas, que eram obrigadas a portar “cartões de doenças venéreas” pendurados no pescoço (Park, 2025).
As ações do governo local evidenciam que a principal preocupação do Estado não era assegurar a saúde e a segurança das cidadãs, mas, antes, garantir aos norte-americanos a ideia de que as mulheres estavam “limpas”. Tal postura revela como o corpo feminino foi constantemente instrumentalizado pelo Estado como meio para atingir objetivos econômicos e de defesa nacional.
Em diversos momentos, as autoridades exaltaram as Kijichon Women, descrevendo-as como “patriotas que ganham dólares” e “guerreiras da linha de frente da economia” (Kitamura, 2025, p. 153). Contudo, simultaneamente, essas mesmas mulheres eram alvo de desprezo e estigmatização, sendo caracterizadas como “um mal ilegal, semelhante a um câncer, mas necessário” (Choe, 2023, tradução nossa).
Nesse sentido, percebe-se como o Estado transformou essas cidadãs em algo que ultrapassa a dimensão biológica do corpo, convertendo-as em instrumentos de controle biopolítico voltados à manutenção e ao cumprimento de metas econômicas e estratégicas. Essa dinâmica pode ser analisada à luz das contribuições da teórica feminista das Relações Internacionais, Cynthia Enloe, cuja obra “Bananas, Beaches and Bases” (2014), constitui um marco na incorporação da perspectiva de gênero aos estudos sobre política global.
Enloe (2014) argumenta que as relações internacionais não são neutras, mas profundamente permeadas por práticas cotidianas que dependem do trabalho, da sexualidade e da disponibilidade dos corpos femininos para sustentar estruturas econômicas e militares. Em seu quarto capítulo, intitulado “Base Women”, a teórica oferece uma análise minuciosa sobre como os corpos femininos são incorporados às dinâmicas de poder militar e político, especialmente nas zonas que circundam bases norte-americanas instaladas em territórios estrangeiros.
Ademais, Enloe (2014), evidencia que o funcionamento e a manutenção dessas bases dependem não apenas da presença militar, mas também de uma rede de relações sociais e econômicas que envolve intensamente as mulheres locais. Entre essas relações, a prostituição surge como um dos mecanismos mais evidentes por meio dos quais o Estado, tanto o país anfitrião quanto o poder imperial, instrumentaliza o corpo feminino para sustentar seus interesses estratégicos.
A teórica expõe que, ao redor das bases militares, cria-se um espaço de convivência e de tensão onde o corpo das mulheres se torna um terreno de negociação entre o militarismo, o nacionalismo e o capitalismo. A prostituição é, nesse contexto, não apenas tolerada, mas sistematicamente administrada e regulamentada, convertendo-se em uma extensão da política de defesa e da diplomacia internacional.
O Estado, ao mesmo tempo, em que moraliza o comportamento feminino e marginaliza as mulheres envolvidas na prostituição, utiliza-se delas como um “recurso” para assegurar a estabilidade e a eficiência das relações militares. Assim, o corpo feminino passa a operar como uma tecnologia biopolítica, onde é controlado, vigiado e moldado conforme as necessidades da segurança nacional e do poder masculino institucionalizado. Enloe (2014) enfatiza que a presença dessas mulheres ao redor das bases militares não é acidental, mas parte de uma lógica mais ampla de dominação global, constituindo um fenômeno estruturado pela intersecção entre gênero, raça, classe e poder.
Por fim, o caso das Kijichon Women evidencia que a prostituição militarizada constitui uma forma sofisticada de poder, sustentada pela exploração sistemática do corpo feminino sob a lógica da dominação imperial e capitalista. Essa instrumentalização do feminino demonstra que, mesmo nos espaços aparentemente periféricos da política internacional, o corpo das mulheres permanece no centro das estratégias de soberania, defesa e acumulação econômica do Estado.
REFERÊNCIAS
CHOE, S. H. A Brutal Sex Trade Built for American Soldiers. The New York Times, 2023. Disponível em: https://www.nytimes.com/2023/05/02/world/asia/korea-us-comfort-women-sexual-slavery.html. Acesso em: 14 out. 2025.
CHOE, S. H. In a First, Korean Women Target U.S. Military in Suit Over Prostitution. The New York Times, 2025. Disponível em: https://www.nytimes.com/2025/09/08/world/asia/korea-comfort-women-us-military.html. Acesso em: 15 out. 2025.
ENLOE, Cynthia. Bananas, Beaches and Bases: Making Feminist Sense of International Politics. 2. ed. Berkeley: University of California Press, 2014.
KITAMURA, K. Korean Comfort Women: An Opportunity for the United States to Engage in Reparative Justice that Heals. Asian-Pacific Law & Policy Journal, Honolulu, v. 26, n. 1, p. 143-188, 2025. Disponível em: https://manoa.hawaii.edu/aplpj/wp-content/uploads/sites/120/2025/01/4-Kitamura-Korean-Comfort-Women.pdf. Acesso em: 14 out. 2025.
LE MONDE. South Korean Women File Landmark Forced Prostitution Lawsuit Against US Military. 2025. Disponível em: https://www.lemonde.fr/en/united-states/article/2025/09/09/south-korean-women-file-landmark-forced-prostitution-lawsuit-against-us-military_6745189_133.html . Acesso em: 15 out. 2025.
PAREDES, A. “Mulheres de conforto” sul-coreanas abrem processo judicial contra Exército norte-americano. Público, 2025. Disponível em: https://www.publico.pt/2025/09/09/mundo/noticia/mulheres-conforto-sulcoreanas-abrem-processo-judicial-exercito-americano-2146507. Acesso em: 15 out. 2025.
PARK, J. The Politicization of Women in South Korea’s Economic Transformation. Emory Journal of Asian Studies, 2025. Disponível em: https://ejas-online.org/wp-content/uploads/2025/05/Park.pdf. Acesso em: 14 out. 2025.
