Caira Queiroz – acadêmica do 6° semestre de Relações Internacionais da UNAMA.

Mais do que um gênero musical, o RAP é uma forma de expressão política e social que emerge das margens urbanas, especialmente das comunidades negras e latinas. Da Jamaica às festas de rua do Bronx, em Nova York, nos anos 1970, o gênero musical tornou-se um movimento transnacional de denúncia das desigualdades e de afirmação de identidades periféricas. Ao aliar ritmo, improviso, poesia e crítica, essa expressão cultural se consolida como ferramenta de resistência frente às estruturas de poder que historicamente silenciaram corpos e vozes subalternas (Atlântida, 2025).

A trajetória do RAP acompanha o processo de globalização e as contradições do mundo contemporâneo. Surgido na Jamaica, na década de 1960, quando surgiram os sistemas de som colocados nos guetos para animar bailes, o RAP foi levado às comunidades negras dos guetos, especialmente das ruas do Bronx, de Nova York, nos Estados Unidos (Borges, s.d.).

Essa introdução do gênero nos EUA se deu por conta da emigração de jovens jamaicanos para os Estados Unidos, devido a uma crise econômica e social que se abateu sobre a ilha (Nolla, 2024). Já o seu termo (rap) fazia parte do Inglês vernáculo afro-americano nos anos de 1960, significando “conversar” e, logo depois disto, no seu uso atual, passou a denotar o estilo musical (Insights, s.d.).

A partir de então, o gênero musical se tornou um dos quatro pilares do movimento hip hop, ao lado do break, do grafite e do DJing (Atlântida, 2025). Nele, a voz se tornou instrumento, as rimas improvisadas (freestyle) se aliaram com batidas e as letras expõem realidades, protesto, amor, festa e vivência. De Nova York a São Paulo, de Paris a Joanesburgo, o rap se espalhou pelo mundo todo e ganhou versões em diferentes línguas e estilos, se adaptando às realidades locais, mas preservando seu objetivo comum: a denúncia da violência estrutural e a valorização da identidade negra e periférica.

Nos Estados Unidos, com nomes de Snoop Dogg, Tupac, Lauryn Hill a Kendrick Lamar, o RAP se transformou em espaço de debate sobre a negritude, a espiritualidade e a luta contra a violência policial. Mas a sua grande virada foi nos anos 2000, que marcaram uma fase de transição deste gênero ao torná-lo o segundo estilo musical mais popular nos Estados Unidos depois do rock (Atlântida, 2025). Assim, o rap deixou os guetos e invadiu as paradas, com a produção de clipes bem produzidos, parcerias com pop e até Grammy.

Já no Brasil, sob influência do hip hop americano, o rap se popularizou por volta dos anos 1990, ganhando notoriedade através da juventude negra, que, desde muito cedo vivendo à margem, passaram a usufruir do estilo musical como uma forma de expressar suas dificuldades enfrentadas no dia a dia (Jornal USP, 2023).

Grupos como Racionais MC’s e artistas como Emicida moldaram o rap nacional e traduzem o cotidiano das favelas e periferias em narrativas de resistência. Letras como “Negro Drama” e “Boa Esperança” expõem as marcas do racismo, da exclusão social e da desigualdade histórica, propondo ao mesmo tempo uma reafirmação da dignidade e da humanidade dos marginalizados.

Entre os marcos do RAP brasileiro, vale pontuar o álbum “Nada Como Um Dia Após o Outro Dia”, lançado em 27 de outubro de 2002 pelos Racionais MC’s, que ocupa um lugar importantíssimo na consolidação da identidade periférica como força estética e política. Dividido em duas partes: “Chora Agora” e “Ri Depois”, o álbum reflete o amadurecimento do grupo e a consciência de classe e raça que orienta suas letras (Fagundes, 2022). Em suas letras, a periferia não é apenas cenário, mas sujeito histórico: um território de dor, mas também de potência, sabedoria e resistência.

O hino “Negro Drama” sintetiza essa visão. A canção é um manifesto sobre a experiência de ser negro e periférico no Brasil pós-colonial, um país que carrega o racismo estrutural como herança direta da escravidão. Quando Mano Brown e Edi Rock rimam “Negro drama, entre o sucesso e a lama”, traduzem a dualidade de uma existência marcada pela luta constante entre o reconhecimento e a exclusão. A letra escancara o peso da cor, da origem e da classe social na definição do destino, questionando o mito da igualdade racial e o apagamento histórico da população negra.

“Daria um filmeUma negra e uma criança nos braçosSolitária na floresta de concreto e açoVeja, olha outra vez o rosto na multidãoA multidão é um monstro, sem rosto e coraçãoEi, São Paulo, terra de arranha-céuA garoa rasga a carne, é a Torre de BabelFamília brasileira, dois contra o mundoMãe solteira de um promissor vagabundo”. Negro Drama, 2002 – Racionais MC’s.

Ou seja, o RAP funciona como uma forma de contradiscurso social, criando uma rede representativa que conecta as periferias do mundo e redefine o que se entende por globalização cultural. Enquanto a cultura hegemônica tenta uniformizar identidades, o RAP reafirma a diferença e o pertencimento, ressignificando o lugar da periferia como centro de produção cultural e política. Assim, o RAP não é apenas entretenimento, mas um ato político que reivindica a presença da periferia no imaginário internacional, desafiando a divisão entre centro e margem, auxiliando o artista e o ouvinte na sua formação social, psicológica, política e econômica (Jornal USP, 2023).

Porém, mesmo que o rap retrate sobre as vidas das periferias e tenha seu poder transformacional na sociedade, mostrando a complexidade de suas existências, essa mesma autenticidade é frequentemente marginalizada pelos meios de comunicação e pela indústria cultural, que tentam reduzir o gênero a estereótipos de criminalidade e vulgaridade (Soares, 2024). Esse processo revela o caráter estrutural da exclusão cultural, que ao resistir a essa lógica, o RAP assume o papel de porta-voz global das periferias, transformando o que era silêncio em discurso político.

Nesse sentido, a teoria pós-colonial de Frantz Fanon e Spivak oferece um arcabouço fundamental para compreender o RAP como prática de voz, formação e transformação social. Em obras como “Os Condenados da Terra” e “Pele Negra, Máscaras Brancas”, Fanon analisa o processo de desumanização do colonizado e o impacto psicológico da dominação colonial sobre o sujeito negro. Já a Spivak introduz o conceito de subalterno como aqueles que não apenas são dominados, mas também excluídos das estruturas de representação (Bueno, 2025).

Assim, quando artistas periféricos e dos guetos narram suas experiências e confrontam os sistemas de opressão, estão realizando o que Fanon chama de reapropriação da humanidade negada. Ao mesmo tempo, suas produções tornam concreto o questionamento formulado por Gayatri Spivak sobre “como os grupos marginalizados podem realmente expressar sua subjetividade em um sistema que os silencia estruturalmente?” (Bueno, 2025).

Ou seja, o RAP, nesse sentido, é uma forma moderna de descolonização cultural e resistência da voz subalterna. Ele transforma as dificuldades e a exclusão em música, questionando os valores eurocêntricos que ainda orientam as relações de poder internacionais. Cada verso que denuncia a violência do Estado, o racismo institucional ou a desigualdade estrutural é um gesto de ruptura, um “grito” contra o colonialismo contemporâneo disfarçado de globalização.

Portanto, o RAP, enquanto voz global das periferias, reafirma o poder da cultura como campo de disputa e emancipação. Ao transformar dificuldades e opressões em música e o silêncio em discurso, o RAP revela uma nova forma de poder nas Relações Internacionais: o poder simbólico da periferia global. O microfone, nesse contexto, é mais do que um instrumento musical, é uma arma política, uma ferramenta de denúncia e um grito coletivo por justiça e reconhecimento.

REFERÊNCIAS

ATLÂNTIDA. RAP: a batida que virou voz de gerações. Atlântida, 2025. Disponível em: https://atl.clicrbs.com.br/musica/noticia/2025/04/rap-a-batida-que-virou-voz-de-geracoes-cm9xad4fm004d013kmc0twbos.html.

BORGES, Larissa. A MÚSICA NO ENSINO DE HISTÓRIA: O RAP COMO UMA VOZ DO ANTIRACISMO. Repositório UFMS, s.d. pág. 06. Disponível em: https://repositorio.ufms.br/retrieve/47b83afe-e6f2-4d28-b6ae-e4fb3bd35a1d/7410.pdf.

BUENO, Guilherme. Pós-colonialismo e Pós-positivismo nas Relações Internacionais. ESRI, 2025. Disponível em: https://esri.net.br/pos-positivismo-e-pos-colonialismo-guia-completo/.

FAGUNDES, Evelyn. Nada como um dia após o outros: jovens falam sobre 20 anos de album do Racionais MC’s. Disponível em: https://agenciamural.org.br/racionais-mcs-nada-como-um-dia-apos-o-outro/.

INSIGTHS. Qual é a diferença entre o rap e o hip hop? Insigths, s.d. Disponível em: https://www.portalinsights.com.br/perguntas-frequentes/qual-e-a-diferenca-entre-o-rap-e-o-hip-hop.

JORNAL DA USP. Rap contribui para a formação social de cantores e jovens da periferia. Jornal da USP, 2023. Disponível em https://jornal.usp.br/diversidade/rap-contribui-para-a-formacao-social-de-cantores-e-jovens-da-periferia/.

NOLLA, Lívia. A história do Rap: conheça o estilo musical que une ritmo e poesia. Nova Brasil, 2024. Disponível em: https://novabrasilfm.com.br/notas-musicais/a-historia-do-rap-conheca-o-estilo-musical-que-une-ritmo-e-poesia.

SOARES, Dayanne. Entre a marginalização e a resistência: O hip hop como voz das periferias. Jornal Casarão, 2024. Disponível em: https://jornalocasarao.uff.br/2024/09/11/entre-a-marginalizacao-e-a-resistencia-o-hip-hop-como-voz-das-periferias/.