
Alciane Carvalho Dias
Acadêmica do 8º semestre de Relações Internacionais
A banda Ratos de Porão, formada em São Paulo, em 1981, representa uma das expressões mais contundentes da música extrema brasileira. Forjada no contexto dos anos finais da ditadura militar, a banda emergiu como voz dissonante de uma juventude periférica que se via excluída dos processos de redemocratização e desenvolvimento econômico. Combinando elementos do punk, do hardcore e posteriormente do metal, os Ratos de Porão construíram uma trajetória marcada por uma crítica social radical que transcende o plano doméstico e se projeta como denúncia das estruturas globais de dominação. Essa dimensão crítica, embora expressa por meio da arte, encontra ressonância com os pressupostos da Teoria Crítica das Relações Internacionais (TCRI), especialmente no que diz respeito à desnaturalização das hegemonias, à valorização das vozes subalternas e à recusa em aceitar a ordem estabelecida como inevitável.
Desde o lançamento de seu primeiro álbum, “Crucificados pelo Sistema” (1984), a banda já demonstrava um compromisso visceral com a denúncia das violências estruturais que atravessam a sociedade brasileira. A crítica à repressão policial, à desigualdade social e à alienação promovida por instituições como a Igreja e o Estado aparece de forma explícita nas letras, que não se furtam ao confronto direto com os símbolos da autoridade. Essa postura, longe de ser apenas estética, revela uma consciência política que se alinha à perspectiva crítica das relações internacionais, ao propor uma leitura do mundo que parte da experiência dos marginalizados e que questiona os discursos legitimadores do poder.
A repressão estatal à banda não se deu apenas no plano simbólico. Durante os anos finais da ditadura militar, os Ratos de Porão foram alvo direto da censura oficial. Documentos do Arquivo Nacional revelam que ao menos oito músicas do grupo foram vetadas pelo regime, entre elas “Corrupção”, “Carestia”, “Devemos Protestar” e “Hierarquia ou Anarquia?”. Essas composições, marcadas por denúncias explícitas à violência institucional e à desigualdade, foram consideradas subversivas e incompatíveis com os valores do regime. A censura imposta à banda evidencia a tentativa do Estado de silenciar vozes dissidentes e controlar os discursos culturais, prática que se insere no que a TCRI identifica como estratégias de manutenção da hegemonia por meio do controle ideológico e da repressão simbólica (ARQUIVO NACIONAL, 2023).
A obra dos Ratos de Porão pode ser compreendida como uma forma de resistência cultural que opera nos interstícios da política e da estética. No álbum “Brasil” (1989), lançado em um momento de transição democrática, a banda articula uma crítica feroz à falsa ideia de progresso e à persistência das desigualdades estruturais. A faixa “Amazônia Nunca Mais” denuncia a devastação ambiental promovida por interesses econômicos transnacionais, antecipando debates contemporâneos sobre ecopolítica e neocolonialismo ambiental. A crítica à exploração da floresta amazônica, nesse sentido, não se limita ao território nacional, mas aponta para uma lógica internacional de dominação que submete os recursos naturais do Sul Global aos imperativos do capital globalizado (RATOS DE PORÃO, 1989).
Essa crítica se aprofunda em “Anarkophobia” (1990), álbum no qual a banda ironiza o medo da desordem e da insurgência como dispositivos de controle social. A faixa “Religião é o Ópio do Povo” retoma a crítica marxista à religião como instrumento de dominação ideológica, revelando como discursos morais são mobilizados para legitimar desigualdades e silenciar dissidências. Essa leitura dialoga diretamente com a TCRI, que denuncia a forma como narrativas culturais e ideológicas são instrumentalizadas para manter a hegemonia de determinados grupos no sistema internacional (MARX, 1844; COX, 1981). A música, nesse contexto, torna-se um espaço de disputa simbólica, no qual se confrontam projetos antagônicos de sociedade.
A circulação internacional da banda, com turnês pela Europa e América Latina, reforça essa dimensão transnacional da resistência. Ao estabelecer conexões com movimentos sociais e culturais que compartilham de uma crítica comum ao neoliberalismo, à militarização e à exclusão, os Ratos de Porão inserem-se em um circuito global de contestação. Essa inserção não apenas amplia o alcance de sua mensagem, como também evidencia a existência de uma solidariedade internacional entre lutas locais, algo que a TCRI reconhece como fundamental para a construção de alternativas à ordem hegemônica (LINKLATER, 1990). A banda, portanto, não apenas denuncia, mas também articula redes de resistência que desafiam as fronteiras nacionais e os limites disciplinares.
O álbum mais recente, “Necropolítica” (2022), reafirma o compromisso da banda com a crítica às formas contemporâneas de gestão da vida e da morte. Inspirado no conceito desenvolvido por Achille Mbembe (2016), o disco aborda temas como o desmonte das políticas públicas, a violência policial e a indiferença estatal diante da morte das populações marginalizadas. A faixa “Aglomeração”, por exemplo, critica a condução da pandemia de COVID-19 no Brasil, evidenciando como a negligência governamental pode ser interpretada como uma forma de necropolítica. Essa abordagem está em consonância com os debates contemporâneos da TCRI, que têm incorporado conceitos como biopolítica e necropoder para analisar as formas pelas quais o poder soberano se exerce sobre os corpos e as populações no sistema internacional (MBEMBE, 2016).
Ao longo de mais de quatro décadas, os Ratos de Porão mantiveram-se fiéis a uma postura crítica e coerente, atualizando suas denúncias conforme as transformações sociais e políticas do Brasil e do mundo. Sua obra, marcada pela radicalidade e pela recusa em se submeter às lógicas do mercado e da indústria cultural, constitui um exemplo potente de como a cultura popular pode operar como espaço de resistência e de produção de saberes insurgentes. A análise da trajetória da banda à luz da Teoria Crítica das Relações Internacionais não apenas ilumina aspectos fundamentais de sua produção artística, como também amplia os horizontes da própria teoria, ao reconhecer a centralidade da cultura na disputa por sentidos e na contestação das hegemonias globais. Em tempos de recrudescimento autoritário e de aprofundamento das desigualdades, a escuta atenta aos Ratos de Porão revela-se não apenas um exercício estético, mas também um gesto político de resistência e de afirmação da vida.
Referências
ARQUIVO NACIONAL. Jão compartilha documentos da ditadura censurando letras do Ratos de Porão. Memórias Reveladas. Disponível em: <https://www.gov.br/memoriasreveladas/pt-br/assuntos/noticias/jao-compartilha-documentos-da-ditadura-censurando-letras-do-ratos-de-porao>. Acesso em: 18 out. 2025.
COX, Robert. Social Forces, States and World Orders: Beyond International Relations Theory. Millennium: Journal of International Studies, v. 10, n. 2, p. 126–155, 1981.
LINKLATER, Andrew. Men and Citizens in the Theory of International Relations. London: Macmillan, 1990.
MARX, Karl. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. Manuscritos de 1844.
MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: n-1 edições, 2016.
RATOS DE PORÃO. Brasil. Roadrunner Records, 1989.
RATOS DE PORÃO. Anarkophobia. Roadrunner Records, 1990.
RATOS DE PORÃO. Necropolítica. Shinigami Records, 2022.
LETRAS. Biografia de Ratos de Porão. Disponível em: <https://www.letras.com.br/ratos-de-porao/biografia>. Acesso em: 18 out. 2025.
