
Maysa Lisboa, 8º semestre de Relações Internacionais
Kaê Guajajara é uma cantora, compositora, atriz, escritora e ativista indígena maranhense, pertencente ao povo Guajajara (THE TOWN, 2025). Sua obra se consolidou como uma das mais importantes expressões da Música Popular Originária (MPO), articulando ancestralidade, inovação estética e ativismo político. Sua presença no cenário cultural brasileiro e internacional coloca em destaque as narrativas indígenas e confronta imaginários coloniais que ainda estruturam a produção artística e intelectual no mundo contemporâneo.
Kaê Guajajara Anhanhi, nascida em 1996, na Terra Indígena Araribóia, no Maranhão, cresceu em Mirinzal, onde conviveu diretamente com seu povo. Aos 7 anos, mudou-se para o Rio de Janeiro com a família, estabelecendo-se no Complexo da Maré, espaço onde teve contato com gêneros como funk, rap e outras linguagens musicais periféricas que mais tarde integrariam sua estética híbrida. Cantora, compositora, atriz, autora e ativista, Kaê se tornou uma das figuras centrais da música indígena contemporânea, fundando a Azuruhu, gravadora dedicada a impulsionar artistas indígenas no cenário nacional (AYALA LABORATÓRIO, 2025).
Sua discografia reverbera esse diálogo entre ancestralidade e contemporaneidade. Seu álbum mais recente, Forest Club (2024), foi lançado no Dia da Amazônia e apresenta uma fusão ousada de musicalidades: funk, disco, pop, afrohouse, amapiano, eletrônica, french house, funaná e ritmos tradicionais indígenas. Com 18 faixas, o álbum foi produzido por Patrick Dias Couto, co-produzido por Nakata e contou com direção executiva do coletivo Azuruhu. Em entrevista, Kaê explica que o disco nasceu de uma fase de intenso estudo musical e expansão criativa:
“Agora, não estamos apenas abordando temas como sobrevivência e violência que nos afetam. Este novo álbum vem para lembrar que também podemos ser felizes e explorar outras formas de viver e resistir” (VOGUE BRASIL, 2024).
O conceito do álbum propõe a criação de um “clube na floresta”, onde a batida eletrônica encontra o tambor ancestral, e a dança se torna uma forma de resistência política e celebração coletiva. A musicalidade é híbrida e ousada, transitando entre trap, afrofuturismo, funk, rap, techno e cantos tradicionais. O disco também valoriza o ze’egete, língua do povo Guajajara, e conta com participações de grandes artistas como Gaby Amarantos, Dino d’Santiago, Rincon Sapiência, Felipe Cordeiro, Manoel Cordeiro, Joss Dee, DJ Salu, Casa de Onijá, DJCasDaGrock e DJ Kaim (AYALA LABORATÓRIO, 2025).
Sua presença no cenário musical e cultural rompe estereótipos sobre o que se entende por identidade indígena. Em entrevistas, Kaê reivindica o título de “diva pop indígena” como gesto político: “Sou indígena, sou pop, sou diva — e posso ser tudo isso ao mesmo tempo” (CORREIO BRAZILIENSE, 2025).
Sua trajetória revela como música e ativismo se entrelaçam. Para Kaê, compor foi inicialmente uma forma de transformar dor em força e invisibilidade em presença. Hoje, sua música conecta ancestralidade, política e estética, criando pontes entre mundos e ampliando a representação indígena no Brasil e no exterior.
A atuação de Kaê dialoga diretamente com os debates da teoria decolonial nas Relações Internacionais. Sua obra confronta a matriz colonial do poder, conceito formulado por Walter Mignolo, que explica como sistemas globais continuam baseados na hierarquização de saberes, corpos e culturas, favorecendo epistemologias ocidentais enquanto marginalizam conhecimentos indígenas. Ao incorporar ritmos tradicionais, cantar em ze’egete e afirmar as lutas territoriais, Kaê pratica a desobediência epistêmica, recusando a lógica que separa o moderno do ancestral. Sua arte existe exatamente no pensamento de fronteira, onde múltiplas epistemologias disputam significado. (MIGNOLO, 2000).
Já Maria Lugones, com o conceito de colonialidade de gênero, mostra como o colonialismo estruturou opressões que afetam de maneira particular as mulheres indígenas. A estética, corporeidade e presença pública de Kaê enfrentam esses padrões, rompendo com a imagem da mulher indígena reduzida à passividade ou exotização. Ao afirmar-se como artista, líder cultural e voz política, encarna a resistência descrita por Lugones, reivindicando agência e múltiplas formas de existir.(LUGONES, 2010).
Assim, a trajetória de Kaê Guajajara se torna uma prática viva da teoria decolonial: sua música opera como território político, desloca narrativas hegemônicas, evidencia epistemologias silenciadas e reafirma que os povos indígenas não pertencem ao passado, mas constituem o presente e o futuro das relações internacionais.
REFERÊNCIAS
Mignolo, Walter. Local Histories/Global Designs: Coloniality, Subaltern Knowledges, and Border Thinking. Princeton University Press, 2000.
Lugones, María. “Heterosexualism and the Colonial/Modern Gender System.” Hypatia, vol. 22, no. 1, 2007, pp. 186–209.
Lugones, María. “Decolonial Feminism.” Hypatia, vol. 25, no. 4, 2010, pp. 742–759.
AYALA LABORATÓRIO. Kaê Guajajara: o baile ancestral, o álbum pop indígena. 2025. Disponível em: https://ayalaboratorio.com/2025/04/29/kae-guajajara-o-baile-ancestral-o-album-pop-indigena/. Acesso em: 22 nov. 2025.
THE TOWN. Kaê Guajajara. Disponível em: https://thetown.com.br/pt/lineup/kae-guajajara/. Acesso em: 22 nov. 2025.
CORREIO BRAZILIENSE. Kaê Guajajara desfaz rótulos e redefine gêneros musicais. 2025. Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/diversao-e-arte/2025/04/7119899-kae-guajajara-desfaz-rotulos-e-redefine-generos-musicais.html. Acesso em: 22 nov. 2025.
VOGUE BRASIL. Entrevista com Kaê Guajajara. 2024. Disponível em: https://vogue.globo.com/. Acesso em: 22 nov. 2025.
