
Alciane Carvalho Dias – acadêmica do 8º Semestre de Relações Internacionais
A reconfiguração da ordem global no século XXI é marcada por um deslocamento tectônico do eixo de poder, que transita do Atlântico Norte para a região da Ásia-Pacífico. Este fenômeno, profetizado pelo líder chinês Deng Xiaoping ainda em 1988 e analisado contemporaneamente por Khanna (2019) como o “Século Asiático”, desafia as categorias tradicionais de análise das Relações Internacionais, pois a construção de uma hegemonia duradoura exige mais do que a mera acumulação de força bruta.
A República Popular da China, a Coreia do Sul e o Japão mobilizam, de forma estratégica, recursos de atração cultural para complementar suas agendas de segurança. A “ofensiva de charme” asiática, materializada em produtos culturais de massa e fundamentada em políticas estatais dirigistas, atua como uma ferramenta para camuflar e facilitar a expansão de poder prevista pela teoria do Realismo Ofensivo.
Para compreender a mecânica da influência asiática, é imperativo recorrer ao conceito formulado por Joseph Nye. O autor argumenta que, na era da informação, a coerção tornou-se politicamente custosa, fazendo da capacidade de moldar preferências alheias um ativo vital. Nye (2004, p. 10) sintetiza essa lógica ao afirmar que o soft power “é a capacidade de conseguir o que você quer através da atração em vez da coerção ou pagamentos”.
Esta definição elucida que o poder brando não é um exercício de vaidade cultural, mas uma estratégia pragmática de resultados. Ao aplicar este conceito, observa-se que as nações asiáticas buscam que seus valores e estéticas sejam vistos como “atraentes”, gerando um ambiente internacional permissivo que economiza os recursos militares e econômicos necessários para forçar esses mesmos resultados (NYE, 2011).
A aplicação prática dessa teoria na Ásia distingue-se do modelo ocidental pelo forte dirigismo estatal, onde a cultura pop é tratada como um recurso de segurança nacional. O Japão foi pioneiro nesta transição com a estratégia que ficou conhecida como “Cool Japan”. Douglas McGray (2002), em sua análise seminal sobre o “Produto Nacional Cool” do Japão, observou que enquanto a economia japonesa estagnava na “década perdida”, sua influência cultural explodia globalmente. O governo japonês, através do Ministério da Economia, Comércio e Indústria (METI), cooptou essa tendência, financiando a exportação de animes e mangás como ferramenta diplomática (MCGRAY, 2002).
Narrativas como as do Studio Ghibli ajudaram a reescrever a identidade do país, afastando o estigma do militarismo da Segunda Guerra Mundial e associando o Japão à inovação e ao pacifismo.
Seguindo esse rastro, a Coreia do Sul refinou o modelo através da “Onda Hallyu”. Dal Yong Jin (2016) argumenta que o sucesso do K-pop e dos K-dramas não é acidental, mas resultado de uma política cultural deliberada iniciada após a crise financeira asiática de 1997, visando diversificar a economia e projetar influência. O Estado sul-coreano investiu em infraestrutura digital e na exportação de conteúdo para criar uma “camada de proteção diplomática” (JIN, 2016).
O consumo global de grupos como EXO, BlackPink e BTS criam uma empatia transnacional que torna politicamente custoso para outros Estados adotarem posturas agressivas contra Seul. A China, por sua vez, implementou a estratégia oficial de “Going Out” (Zouchuqu), incentivando suas empresas de mídia a competirem globalmente para “contar bem a história da China”.
Jogos como Genshin Impact e a expansão da mídia estatal (CGTN) buscam humanizar a ascensão chinesa. Contudo, David Shambaugh aponta as limitações estruturais dessa abordagem, notando que “a China possui um amplo arsenal de soft power, mas a sua eficácia é limitada pela natureza do seu sistema político doméstico” (SHAMBAUGH, 2013, p. 205). O comentário do autor destaca o paradoxo chinês: a atração cultural é frequentemente minada pela desconfiança política gerada pelo autoritarismo, criando um teto para a eficácia de sua sedução no Ocidente.
Apesar da visibilidade dos produtos culturais, seria ingênuo assumir que a estratégia asiática se resume à busca por popularidade. A teoria do Realismo Ofensivo, proposta por John Mearsheimer, oferece a lente necessária para entender o “fim último” dessa estratégia em um sistema internacional anárquico. Mearsheimer (2001, p. 2) argumenta que “as grandes potências raramente estão contentes com a atual distribuição de poder; pelo contrário, elas enfrentam um incentivo constante para mudá-la”. Sob esta ótica, o soft power asiático funciona como uma ferramenta de dissimulação estratégica.
A “fofura” da cultura pop (kawaii) e a estética polida do entretenimento mascaram a acumulação de hard power (militar e econômico). A China utiliza a retórica de “ascensão pacífica” para evitar a formação de coalizões de balanceamento militar contra si antes que tenha consolidado sua hegemonia regional (MEARSHEIMER, 2001).
Conclui-se, portanto, que a construção de hegemonia na Ásia contemporânea opera através de uma estratégia híbrida. Enquanto a lógica estrutural segue os ditames do Realismo Ofensivo — buscando a maximização de poder e a segurança absoluta —, a tática operacional apoia-se no soft power. Animes, K-pop e doramas são vetores geopolíticos que, ao seduzir audiências globais, pavimentam o caminho para que a ascensão asiática seja recebida com fascínio, mitigando o temor inerente à mudança de poder global.
