Izabelle Gama (acadêmica do 2º semestre de RI da UNAMA)

O avanço do chamado “terceiro debate” nas Relações Internacionais marcou um processo de abertura epistemológica em direção a perspectivas críticas que passaram a questionar os fundamentos eurocêntricos da disciplina. Esse debate, caracterizado pela convivência entre abordagens como o construtivismo, o pós-modernismo e o pós-colonialismo, representou uma ruptura com leituras estritamente positivistas e abriu espaço para reflexões voltadas à historicidade, à subjetividade e às relações de poder subjacentes à ordem internacional (Sarfati, 2000). Nesse contexto, o pós-colonialismo consolidou-se como uma das vertentes que mais tensionaram as narrativas hegemônicas da modernidade e evidenciaram a permanência das estruturas coloniais no mundo contemporâneo.

O pensamento pós-colonial parte da compreensão de que o colonialismo não foi apenas um episódio histórico delimitado, mas uma lógica duradoura de poder que organizou a economia-mundo, produziu hierarquias raciais e estruturou regimes de conhecimento (Spivak, 2010). A dominação imperial operou simultaneamente por meio da exploração material e da produção simbólica de identidades inferiorizadas, legitimadas por discursos de civilização, ciência e progresso (Fanon, 2005). Para as Relações Internacionais, essa crítica revela que a própria constituição da ordem internacional moderna está enraizada em processos de violência, expropriação e racialização.

É dentro dessa tradição crítica que se insere Achille Mbembe, um dos principais pensadores do pós-colonialismo contemporâneo. Nascido em 1957 nos Camarões, Mbembe formou-se em História e Ciências Políticas na França, onde concluiu seu doutorado na Universidade Paris 1 Panthéon-Sorbonne em 1989. Sua trajetória intelectual articula filosofia africana, teoria crítica e história global, produzindo uma reflexão original sobre a modernidade, o Estado e as tecnologias de poder inauguradas pelo colonialismo (Mbembe, 2001).

Em On the Postcolony (2001), Mbembe sustenta que a modernidade ocidental não pode ser compreendida de forma dissociada da experiência colonial. Segundo o autor, os ideais universalistas europeus foram construídos paralelamente à negação sistemática da humanidade dos povos colonizados. O colonialismo teria funcionado como um verdadeiro laboratório político de experimentação de técnicas de classificação racial, disciplinamento dos corpos e exploração extrema, produzindo sujeitos permanentemente submetidos à precarização, à violência e à exclusão.

Nos estudos de Mbembe, as formas de violência colonial adquirem centralidade por revelarem a articulação entre duas dimensões fundamentais da soberania moderna: a gestão da vida e a administração da morte. Em diálogo com Michel Foucault, o autor afirma que o biopoder, entendido como a capacidade estatal de gerir populações, não é suficiente para compreender sociedades profundamente marcadas pela racialização (Mbembe, 2016). Para Mbembe, a expressão máxima da soberania reside na capacidade de decidir quem deve viver e quem pode morrer. Nesse quadro, a raça ocupa um lugar estruturante na organização da violência, pois a racialização define quais vidas são protegidas e quais se tornam descartáveis. O racismo, portanto, constitui uma tecnologia política central da modernidade.

Essa reflexão conduz à formulação do conceito de necropolítica, definido como o exercício do poder por meio da submissão sistemática de populações à morte. A necropolítica designa as formas pelas quais Estados e estruturas de dominação produzem zonas onde a vida é reduzida à condição de existência precária e eliminável. Em Mbembe, essa dinâmica está diretamente associada ao racismo, uma vez que são majoritariamente corpos racializados que ocupam esses espaços de exposição permanente à morte, seja por meio da violência direta, seja pelo abandono institucional (Mbembe, 2016; Mbembe, 2001).

Ao analisar as experiências coloniais, Mbembe demonstra que práticas como segregação espacial, militarização do cotidiano, suspensão da legalidade e vigilância extrema antecederam os regimes autoritários europeus do século XX. Esses dispositivos foram inicialmente aplicados sobre populações africanas e asiáticas sob domínio imperial, revelando que a violência extrema não representa um desvio da modernidade, mas um de seus próprios fundamentos históricos, estruturado a partir da lógica racial e imperial (Mbembe, 2001).

Apesar da centralidade da violência em sua análise, Mbembe não reduz o pós-colonial à denúncia. Em What is Postcolonial Thinking? (2006), o autor propõe compreender o pós-colonial como uma condição marcada pela pluralidade, pela hibridização cultural e pela reinvenção das identidades. Ainda que originado de uma experiência histórica violenta, o mundo pós-colonial também produz práticas de criação social, resistências e reconfigurações contínuas das formas de existência (Mbembe, 2006).

A partir dessa perspectiva, Mbembe propõe a construção de uma política do semelhante, voltada à superação das categorias rígidas de identidade produzidas pelo colonialismo. Tal projeto implica reconhecer a humanidade como resultado de encontros históricos, conflitos e interdependências, e não como propriedade exclusiva de um centro civilizacional. No campo das Relações Internacionais, essa abordagem contribui diretamente para a crítica às hierarquias raciais e geopolíticas que ainda estruturam a ordem global (Mbembe, 2006).

Dessa forma, Achille Mbembe consolida-se como uma das principais referências do pensamento pós-colonial contemporâneo. Sua obra evidencia que o colonialismo permanece inscrito nas instituições modernas, na distribuição desigual da violência e nos modos de governar populações ao redor do mundo. Ao mesmo tempo, oferece instrumentos teóricos para a construção de alternativas ao paradigma eurocêntrico, reafirmando a centralidade da questão racial e do racismo estrutural como categorias fundamentais para a compreensão das dinâmicas de poder no século XXI.

Referências

FANON, Frantz. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.


MBEMBE, Achille. On the Postcolony. Berkeley: University of California Press, 2001.


MBEMBE, Achille. Necropolítica. Arte & Ensaios, n. 32, 2016.


MBEMBE, Achille. What is Postcolonial Thinking? Esprit, 2006.


SARFATI, Gilberto. Teorias de Relações Internacionais. São Paulo: Saraiva, 2000.


SPIVAK, Gayatri C. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.