
Sofia Dias Santos, acadêmica do 2° semestre de Relações Internacionais
Ficha Técnica:
Ano: 1990
Gênero: Comédia / Família / Aventura
Diretor: Chris Columbus
Distribuição: Fox Film
País de Origem: Estados Unidos
Dessa forma, o conflito estrutural entre proprietários e despossuídos é deslocado para uma lógica moral individual, na qual a marginalização aparece como falha pessoal, e não como resultado das relações sociais capitalistas. Tal deslocamento cumpre uma função ideológica central: ocultar a exploração e as desigualdades estruturais que sustentam o modo de produção capitalista, apresentando a ordem social vigente como natural e necessária (MARX; ENGELS, 2007).
Lançado em 1990, Esqueceram de Mim (Home Alone), dirigido por Chris Columbus, consolidou-se como um dos filmes mais emblemáticos da cultura pop associada ao período natalino. Em uma leitura inicial, a obra apresenta-se como uma comédia familiar, cuja narrativa se organiza em torno da experiência de Kevin McCallister, um garoto pertencente à classe média alta que, de forma acidental, é deixado sozinho em sua residência durante as férias de Natal, após a viagem de sua família (MEU RETIRO, 2021).
A princípio, a ausência dos familiares é vivenciada por Kevin como uma experiência de liberdade e autonomia, correspondendo a um desejo anteriormente manifestado pelo personagem. No entanto, essa aparente emancipação é rapidamente tensionada quando o garoto se vê vulnerável à ameaça representada por dois ladrões, conhecidos como os “Bandidos Molhados”, Harry e Marv, interessados nos bens materiais presentes na residência. Ao tomarem conhecimento de que a casa encontra-se sem a supervisão de adultos, os invasores planejam um assalto, o que leva Kevin a assumir a responsabilidade de proteger o espaço doméstico. Para isso, ele elabora e executa uma série de armadilhas, prolongando o confronto até o retorno de seus familiares.
A narrativa da obra se desenvolve em um contexto marcadamente burguês: uma família numerosa, capaz de realizar uma viagem internacional à Europa, residente em uma casa ampla, equipada com bens de consumo sofisticados e localizada em um bairro de alto padrão. Esse cenário está longe de ser neutro. Conforme a análise marxista, a propriedade privada não deve ser compreendida apenas como posse material, mas como um elemento central na organização das relações sociais capitalistas, funcionando como marcador de status, poder e legitimidade social (MARX, 2013). Ao apresentar esse modo de vida como norma desejável e universal, o filme contribui para a naturalização de privilégios de classe e para a invisibilização das desigualdades estruturais que sustentam esse padrão de consumo, processo característico da ideologia burguesa (MARX; ENGELS, 2007).
Essa lógica manifesta-se de forma explícita na representação dos antagonistas Harry e Marv, os chamados “bandidos molhados”. Os personagens são retratados como sujeitos marginalizados, socialmente deslocados, associados à criminalidade, à sujeira e à irracionalidade. Tal construção narrativa reforça a oposição entre o espaço da propriedade privada — organizado, aquecido e repleto de bens — e os sujeitos despossuídos, representados como ameaça à ordem social. Essa dicotomia expressa o que Marx identifica como a função ideológica da propriedade privada no capitalismo: legitimar a exclusão e a violência contra aqueles que se encontram fora da ordem produtiva dominante (MARX, 2013).
A atuação de Kevin, embora infantil, assume uma dimensão ideológica relevante. Ao defender a casa por meio de armadilhas violentas, o personagem encarna a noção de que a preservação da propriedade privada autoriza o uso da força contra aqueles que a ameaçam. Em O Capital, Marx demonstra que a própria constituição histórica da propriedade capitalista está associada à violência e à coerção, posteriormente naturalizadas como defesa legítima da ordem social (MARX, 2013). No filme, essa violência é apresentada de forma cômica e moralmente aceitável justamente porque se dirige a sujeitos previamente deslegitimados pela narrativa, processo que corresponde à lógica descrita por Marx e Engels ao analisarem a produção das ideias dominantes como expressão dos interesses da classe dominante (MARX; ENGELS, 2007).
Sob a perspectiva marxista aplicada às Relações Internacionais, essas representações podem ser compreendidas como extensões das dinâmicas do capitalismo em escala global, nas quais a defesa da propriedade privada e a reprodução das desigualdades estruturais assumem papel central na organização social e internacional. Como argumenta Marx, a propriedade atua como princípio organizador das relações sociais, sustentado por uma ideologia que naturaliza privilégios e legitima formas de violência direcionadas àqueles que ameaçam a ordem estabelecida (MARX, 2013).
Nesse sentido, Esqueceram de Mim pode ser interpretado como uma narrativa que reforça simbolicamente a lógica capitalista da proteção irrestrita da propriedade privada. O espaço doméstico da família McCallister representa a materialização da propriedade como locus legítimo de segurança, estabilidade e valor social, enquanto Harry e Marv são construídos como sujeitos externos a essa ordem, cuja simples presença justifica medidas extremas de defesa. Tal oposição reproduz uma dicotomia típica do pensamento burguês, na qual a proteção da propriedade é moralmente legitimada, ao passo que a pobreza é criminalizada (MARX, 2013).
REFERÊNCIAS
MEU RETIRO. Esqueceram de mim: Um clássico natalino e suas lições (resenha), 2021. Disponível em: https://revista.meuretiro.com.br/resenhas/esqueceram-de-mim-resenha/. Acesso em: 15 dez. 2025.
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital. Tradução de Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã: crítica da mais recente filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas (1845–1846). Tradução de Rubens Enderle; Nélio Schneider; Luciano Cavini Martorano. São Paulo: Boitempo, 2007.
