Lygia Socorro Sousa Ferreira – Doutora em Comunicação e Semiótica Docente do Curso de RI – Unama

A inteligência artificial consolidou-se como o novo paradigma técnico-informacional do século XXI, frequentemente apresentada como motor de produtividade e, em sentido oposto, como ameaça ao emprego humano. Essa oposição, embora recorrente no discurso público, simplifica um fenômeno cuja complexidade exige análise crítica. Autores como Trivinho (2007) e Santaella (2023; 2025) alertam que as tecnologias não operam como instrumentos neutros; ao contrário, constituem sistemas simbólicos que reconfiguram os modos de produção, a cultura, as subjetividades e as próprias relações de trabalho.

Inserida na lógica do capitalismo contemporâneo — responsável por articular mercado, inovação e avanço tecnológico —, a inteligência artificial não surge como promessa de emancipação laboral. Sua difusão responde, sobretudo, ao imperativo estrutural de redução de custos, intensificação da produtividade e ampliação da extração de mais-valia. Harvey (2011) demonstra que a tecnologia é mobilizada para acelerar a rotação do capital, submetendo o trabalho a um regime contínuo de eficiência e competitividade, no qual a automação opera como estratégia para contornar limites à acumulação permanente.

Nesse contexto de aceleração, a contribuição de Paul Virilio (1996) torna-se particularmente elucidativa. Para o autor, toda tecnologia carrega consigo o seu próprio acidente: assim como o navio tornou possível o naufrágio, a inteligência artificial engendra novas formas de obsolescência humana e de fragmentação do espaço-tempo laboral. Os conceitos de “estética da desaparição” e “dromologia” — o estudo da velocidade — evidenciam que a IA impõe ritmos produtivos incompatíveis com a temporalidade biológica humana, instaurando processos de exclusão que se baseiam menos na qualificação formal e mais na capacidade de acompanhar velocidades tecnológicas crescentes.

Essa análise é aprofundada por Lev Manovich (2002, 2013), ao discutir a “softwareização” da cultura. Para o autor, o software — e, de modo intensificado, a inteligência artificial — constitui uma camada invisível que atravessa praticamente todas as dimensões da vida social contemporânea, moldando não apenas o que se produz, mas também a forma como se concebe a produtividade, a criatividade e a tomada de decisão. A automação de processos cognitivos e criativos não representa apenas um avanço técnico, mas uma reconfiguração da agência humana, progressivamente delegada a algoritmos que operam em escalas de dados inalcançáveis pela experiência individual.

As implicações desse processo tornam-se visíveis em dados recentes. Relatórios de 2025 da OECD (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico) e da International Labour Organization (ILO) indicam que, embora determinadas ocupações altamente qualificadas experimentem valorização salarial, cerca de 28% dos empregos em países desenvolvidos encontram-se sob elevado risco de automação. A inteligência artificial generativa afeta de maneira mais intensa funções administrativas e de suporte, aprofundando desigualdades de gênero e de classe. Nesse cenário, Francisco Rüdiger (2002) observa que a mediação tecnológica tende a reduzir o sujeito humano à condição de “apêndice do sistema comunicacional”, atualizando formas contemporâneas de alienação já diagnosticadas pela teoria crítica.

Entretanto, interpretar a inteligência artificial exclusivamente como ameaça conduz a uma leitura igualmente limitada. Lúcia Santaella (2023, 2025), ao desenvolver o conceito de mente simbiótica, propõe uma abordagem menos determinista. Para a autora, vivenciamos um processo de coevolução entre humanos e máquinas, no qual a IA pode atuar como prótese cognitiva, ampliando capacidades criativas, interpretativas e expressivas. Essa potencialidade, contudo, depende da existência de letramento crítico, de políticas públicas e de formas de regulação capazes de subordinar a tecnologia às necessidades humanas e sociais.

Dessa forma, a questão central — se a inteligência artificial é aliada ou perigo para o mercado de trabalho — não admite uma resposta unívoca. A IA revela-se aliada quando orientada para a ampliação das capacidades humanas, a redução de tarefas repetitivas e a criação de condições de trabalho mais dignas. Contudo, converte-se em perigo estrutural quando implementada sob a lógica exclusiva da maximização do lucro, da vigilância e da precarização. Conforme sugere Harvey (2011), o futuro do trabalho mediado por tecnologias não é determinado pela técnica em si, mas pelas disputas sociais, políticas e econômicas que definem seus usos. Assim, mais do que um destino tecnológico, a inteligência artificial constitui hoje um campo aberto de luta social, no qual está em jogo a própria sustentabilidade das vidas trabalhadoras.

REFERÊNCIAS

HARVEY, David. A brief history of neoliberalism. Oxford: Oxford University Press, 2011.

ILO (International Labour Organization). Generative AI and Jobs: A global analysis of potential effects on job quantity and quality. Geneva: ILO, 2025.

MANOVICH, Lev. Software Takes Command. New York: Bloomsbury Academic, 2013.

MANOVICH, Lev. Cultural Analytics. Cambridge: MIT Press, 2002.OECD. AI and the Labour Market: Outlook 2025. Paris: OECD Publishing, 2025.

RÜDIGER, Francisco. As teorias da comunicação. São Paulo: Paulus, 2002.

SANTAELLA, Lúcia. Ética e criatividade na Inteligência Artificial. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2025.

SANTAELLA, Lúcia. A Inteligência Artificial é inteligente?. São Paulo: Edições 70, 2023.

TRIVINHO, Eugênio. A dromocracia glocal: comunicação, tecnocultura e o eclipse do humano. São Paulo: Paulus, 2007.

VIRILIO, Paul. Velocidade e Política. Rio de Janeiro: Estação Liberdade, 1996.