Rayana Yukari Fachinetti Inomato – internacionalista formada em Relações Internacionais pela Unama

A recente nomeação de Maysaa Sabrine para liderar o Banco Central da Síria, antes vice-governadora da instituição sob o regime de Bashar al-Assad (O Globo e agências internacionais, 2024), representa um marco significativo no contexto político e econômico do país, sendo a primeira mulher a ocupar esse cargo em mais de 70 anos.
Sua nomeação ocorre em um momento de transição crucial, pois após mais de uma década de guerra civil, a Síria busca reconstituir suas instituições, reconfigurar sua posição no cenário global e sair de uma profunda crise econômica. Esse feito representa um ponto de partida para uma reconstrução da identidade estratégica da Síria, além de ser uma fachada singular para as reivindicações dos movimentos de mulheres do país.
Esse feito não ocorre de forma isolada, ela é contextualizada em um ambiente político instável, marcado pela queda do regime de Bashar al-Assad e pela ascensão do grupo rebelde Hayat Tahrir al-Sham (HTS) ao controle de partes importantes do território sírio. O governo de Bashar al-Assad, que manteve o controle da Síria por mais de 20 anos, foi caracterizado por um regime autoritário, repressivo e marcado por violações dos direitos humanos, especialmente após o início da revolta em 2011.
Durante o conflito, o regime de Assad foi responsável por uma série de ações violentas contra civis e opositores, com o uso de armas químicas, ataques a áreas residenciais e a promoção de uma política de controle centralizado que exacerbou as divisões sectárias dentro do país. Além disso, o regime sírio foi alvo de diversas sanções internacionais, que impactaram gravemente a economia do país. O governo de Assad também manteve uma estrutura política extremamente patriarcal, onde as mulheres estavam amplamente excluídas de posições de liderança e poder nas instituições políticas e econômicas, refletindo as normas conservadoras que dominavam a sociedade síria.
Segundo o relatório “Syria Situation of women“, do European Asylum Support Office (EASO) de 2020, as mulheres e as crianças foram maioria das pessoas afetadas pelos confrontos e bombardeamentos nas linhas da frente, além de que as mulheres foram ‘as mais afetadas’ devido aos seus “múltiplos papéis e responsabilidades como mães e cuidadoras”, e devido a questões relacionadas com a sua saúde e o seu estatuto na sociedade síria (p. 11).
Em contrapartida, após a insurreição dirigida pela organização Hayet Tahrir al-Sham (HTS), o governo tem tentado apresentar-se internacionalmente com uma imagem moderada, tendo o ministro dos Negócios Estrangeiros sírio, Assaad Hassan al-Shibani, “garantido ao serviço online X que as autoridades estavam “do lado” das mulheres e “apoiam totalmente os seus direitos”, confiando em suas capacidades” (AFP, 2024). Essa visão moderada pode ser vista como uma estratégia para restaurar a confiança nas instituições financeiras e buscar estabilidade econômica em um momento crítico, tendo como uma das prioridades e desafios imediatos a estabilização da moeda nacional (AFP, 2024), refletindo a pressão externa por mudanças, incluindo as demandas por maior participação feminina na liderança política e econômica, exigências que ganham relevância à medida que a Síria tenta reconstruir sua identidade.
A partir disso, entende-se sob a ótica do Construtivismo em Relações Internacionais, como esse acontecimento pode revelar como normas, identidades e valores influenciam decisões de Estado. Segundo Alexander Wendt, no livro Social Theory of International Politics (1999), as identidades e motivações dos atores internacionais são desenvolvidas por meio de ideias, normas e práticas compartidas, construídas através das práticas e interações dos estados.
A ideia de Wendt atrelada com a ideia de Martha Finnemore, no livro “National Interests in International Society” (1996) de que as normas internacionais têm o poder de transformar as políticas domésticas e internacionais, além de que em cenários pós-conflito, as normas internacionais atuam frequentemente como um guia para a reconstrução, proporcionando uma legitimidade nas normas aplicadas, representam uma base para análise e compreensão da nomeação de Maysaa como fruto de uma tentativa do novo governo sírio de se adaptar às normas e alinhamentos externos, mostrando reconstruir sua identidade interna e se reconectar com a comunidade internacional. Pode-se entender também que a nomeação de Sabrine é reflexo das transformações normativas que ocorrem no cenário internacional, onde a promoção de mulheres a cargos de liderança se tornou uma importante questão de justiça social e política.
Nesse sentido, compreende-se que a Síria está passando por um processo de reforma política, econômica e identitária, sendo a nomeação de Sabrine um marco significativo na reconstrução pós-Assad. Esse contexto aponta para as complexidades da transição política do país, sendo um evento multifacetado que vai além de uma simples decisão administrativa. A reconstrução do Estado Sírio pós-conflito é acompanhada de perto pela comunidade internacional e a
nomeação de uma mulher para um cargo de poder de grande importância oferece uma oportunidade de reflexão sobre como as mudanças políticas e sociais podem modificar as normas internas e as percepções globais sobre um país em processo de reconstrução.


Referências:

AFP. Mulher nomeada para chefiar o banco central da Síria. Welt, 31 dez. 2024. Disponível em: https://www.welt.de/politik/ausland/article255002864/Premiere-Frau-an-die-Spitze-der-Zentralbank-in-Syrien-berufen.html?utm_source=chatgpt.com European Asylum Support Office (EASO). Syria Situation of women. 2020. FINNEMORE, Martha. National Interests in International Society, Cornell University Press, 1996. O Globo e agências internacionais. Novos líderes da Síria nomeiam primeira mulher para liderar Banco Central em mais de 70 anos. O globo, 30 dez. 2024. Disponível em: https://oglobo.globo.com/mundo/noticia/2024/12/30/novos-lideres-da-siria-nomeiam-primeira-mulher-para-liderar-banco-central-em-mais-de-70-anos.ghtml WENDT, A. Social Theory of International Politics. Cambridge: Cambridge University Press, 1999